Delfim Netto morreu nesta segunda-feira (12/08), aos 96 anos. Espero que não apareça algum político com a ideia brilhante de renomear algum espaço público com o nome dele. Já basta termos em Sinop o aeroporto municipal “Presidente João Batista Figueiredo”. Delfim e Figueiredo são personagens emblemáticos da Ditadura Empresarial-Militar, que assolou o país de 1964 a 1984. Não merecem ser reverenciados com seus nomes em espaços públicos. Merecem ser lembrados, sim! Mas por terem participado de um regime assassino, que torturou e matou pessoas. É essa memória que o povo brasileiro deve ter dessas figuras. Precisamos repensar quem são os nossos heróis… O economista Delfim Netto - ministro da Fazenda em boa parte da Ditadura - precisa ser lembrado principalmente por ter sido signatário do AI-5 - o Ato Institucional mais severo do regime, que deu carta branca para o Governo Militar caçar os direitos políticos de quem bem entendesse, dissolver o Congresso e abrir a caixa de pandora da tortura, estabelecendo o terrorismo de Estado.
Deve ser lembrado por um “Milagre Econômico” excludente, que aumentou a concentração de renda no país, promovendo um desenvolvimento econômico a custo do empobrecimento da população. Tinha a célebre frase de que primeiro “era preciso fazer o bolo crescer antes de dividi-lo”. O bolo cresceu, mas as fatias ficaram nas mãos de meia dúzia…
Figueiredo, por sua vez, foi o último presidente de um regime que já estava moribundo, próximo de ruir, mas mesmo assim, minha gente! Emprestar o nome de um ditador para um aeroporto diz muito sobre como a gente trata a nossa memória e qual tipo de mensagem queremos transmitir às gerações futuras.
A ditadura empresarial-militar foi um tremendo retrocesso para o país, enquanto nação. Retrocessos principalmente na área do conhecimento e da intelectualidade. Perdemos muitos cérebros para o exílio e aqui se tornou um ambiente extremamente hostil em que pensar diferente do regime significava cadeia, tortura, choque nos anus e na vagina, significava a morte! "Brasil, ame ou deixe-o". Esse era o lema.
A falta dessa reparação, dessa memória, dessa justiça faz com que sejamos assombrados por esses fantasmas do passado, ao ponto de nos lembrarmos de ditadores como referências dignas para nomear escolas, vias públicas, praças e aeroportos. A falta dessa memória coletiva nos faz presenciar bizarrices como o “Oito de Janeiro” - um ataque direto às instituições democráticas - e achar que isso é liberdade de expressão e não tentativa de golpe de Estado.
Trago essa reflexão para o espaço geográfico de Cáceres: quem são os nossos heróis, imortalizados em praças, ruas e bustos? Porquê Praça Rio Branco? Porquê Major João Carlos? Isso realmente faz sentido?
Esses espaços - via de regra - são nomeados pela população a partir de toda uma vivência social e ancestralidade, aí vem o Poder Público, normalmente, sem consultar as pessoas, e muda o nome do espaço. Não à toa que, nos anos 1980 os políticos da época tiveram que dar o braço a torcer, fazendo uma lei para que a Praça Benjamin Constant (outro suposto herói da Guerra do Paraguai) voltasse a ser denominada de Praça da Cavalhada, porque a população nunca parou de chamá-la assim, devido as festividades que ocorriam nesse espaço no período colonial de Cáceres.
Essas praças deveriam ter os nomes dos pescadores, dos comerciantes, dos escravizados das fazendas Jacobina e Descalvados. Esses personagens, de fato, participaram efetivamente da construção dessa cidade. E não esses "generais de 10 estrelas que ficam atrás da mesa com o cú mão", como diria Renato Russo.
Pensando na morte do Delfim Netto e nas prováveis deferências que farão a ele, eu questiono: quais tipos de heróis e memória estamos forjando afinal?
Passado, presente e futuro se misturam. A questão é: de que maneira a gente quer que o passado se reflita em nossas condutas e ações no presente e no futuro? Lembrando de heróis questionáveis da historiografia oficial ou de pessoas que realmente viveram a cidade, sentiram a cidade. Que realmente deram contribuições significativas nas áreas da cultura, das artes, ciências e economia. Eu prefiro essa outra memória.
É sobre isso, pessoal.
Marcio Camilo é jornalista e mestre em Comunicação e Poder pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
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