Católicos precisam confessar sua cumplicidade no golpe fracassado nos EUA. Editorial do jornal National Catholic Reporter
Eis o texto.
Há muita culpa em circulação depois da vergonhosa invasão do Capitólio dos Estados Unidos nessa quarta-feira, 6, por uma multidão de direita que tentou impedir a contagem formal dos votos do Colégio Eleitoral para o próximo presidente legalmente eleito dos Estados Unidos.
Claramente, o atual residente da Casa Branca há meses tem mentido repetida e deliberadamente sobre a inexistente fraude eleitoral e, enquanto bandidos empunhavam a bandeira dos Estados Confederados passeavam pelo Capitólio, ele é culpado por incitar a violência em seu discurso matinal na Casa Branca. No fim do dia, ele expressaria seu “amor” por aqueles que só podem ser descritos como terroristas domésticos.
E, é claro, os mais de 100 republicanos da Câmara e mais de uma dezena de senadores republicanos que planejaram se opor aos resultados do Colégio Eleitoral nessa quarta-feira – incluindo aqueles que mais tarde mudaram de ideia e, sejamos honestos, praticamente todos os republicanos, exceto o senador Mitt Romney – serão lembrados por acender o fogo que, no fim, explodiu em chamas.
Até mesmo o vice-presidente, Mike Pence, e o quase ex-líder da maioria no Senado Mitch McConnell, que tentaram fazer a coisa certa ao fazer discursos razoáveis pela manhã, não conseguiram apagar os últimos quatro anos de apoio a Trump e de contribuição para o clima que alimentou o frenesi.
Mas, também entre aqueles que têm alguma culpa pelo fracasso da insurreição dessa quarta-feira, estão mais do que algumas lideranças da nossa Igreja. Os apologistas católicos de Trump têm sangue em suas mãos.
Muitos estadunidenses ficaram chocados ao verem a multidão violenta quebrando vidros e escalando os muros, enquanto membros do Congresso se agachavam debaixo das mesas ou corriam para bunkers seguros.
Nós não ficamos surpresos.
Esse é o ponto culminante daquilo que esta presidência tem sido desde o início – e alguns católicos ficaram em silêncio ou, pior, torceram junto, incluindo alguns bispos, padres, algumas irmãs, a mídia católica de direita e muitas pessoas do movimento pró-vida.
Estamos falando com vocês, CatholicVote.org, procurador geral William Barr e outros católicos do governo Trump, Amy Coney Barrett, cardeal Timothy Dolan, Bill Donohue, da Catholic League, nefasta pró-vida Abby Johnson. Infelizmente, a lista continua.
E o que dizer dos católicos do dia a dia – cerca de 50% deles – que votaram em Trump neste ano, depois de quatro anos de incompetência, de apelos racistas e ataques às normas democráticas? Nem todos estiveram no “protesto” em Washington, mas muitos apoiaram organizações que alimentaram as chamas.
Muitos eleitores católicos se contentaram em agradar a Trump em troca de incentivos fiscais, ou de juízes da Suprema Corte ou de subsídios para as escolas católicas.
Muitas dessas pessoas foram moldadas pela mídia católica de direita, sejam padres desonestos no Twitter, sites como o Church Militant ou o LifeSiteNews, ou o conglomerado de mídia católica Eternal Word Television Network (EWTN). Este último, com o seu verniz de respeitabilidade, desinformou milhões de católicos em todo o mundo com suas notícias tendenciosas e programas de opinião.
O âncora da EWTN, Raymond Arroyo, que faz bico no programa “The Ingraham Angle” da Fox News, onde ele está livre da suposta respeitabilidade da EWTN, merece destaque.
Isso deve parar. Se a Igreja deseja viver de acordo com os ensinamentos do seu fundador e se deseja ser uma testemunha para a cultura, ela não pode e não deve fazer parte daquilo que aconteceu no Capitólio da nossa nação. Não deve haver um nacionalismo católico branco. E um movimento pró-vida que adota o nacionalismo branco não é um verdadeiro movimento pró-vida. Ponto.
Embora alguns prelados tenham se manifestado o tempo todo, a Conferência dos Bispos como um todo deve confessar publicamente e expiar a sua cumplicidade no empoderamento do presidente e do Partido Republicano nessa violência e na difamação do Partido Democrata. Os bispos dos EUA poderiam começar dissolvendo aquela comissão ad hoc adversária do presidente eleito, Joe Biden, e usar seus vários recursos para mudar a forma como discutimos o que significa ser católico pró-vida. Um movimento pró-vida que não quer exclamar “Vidas Negras Importam” não é um movimento pró-vida.
Vestir-se de panos de saco e cobrir-se de cinzas não deveriam estar fora de questão, mas será necessário mais do que uma confissão.
Nossos líderes religiosos, muitos dos quais perpetuam a própria supremacia branca que levou ao golpe dessa quarta-feira, devem começar o longo e árduo trabalho de tentar reconstruir uma cultura política de confiança e unidade. Isso não pode ser feito com um hiperpartidarismo e um foco intenso em apenas uma questão.
A tentação de agradar o poder é real, e alguns ainda se recusam a abrir mão disso. Alguns estão tentando desviar a culpa do golpe dessa quarta-feira para um falso movimento antifa; outros estão tentando “deixar isso para lá” de forma muito rápida.
Um refrão frequente após o ocorrido foi que “somos melhores do que isso”. Em alguns aspectos, isso é falso. Isso faz parte de quem somos – sempre fez parte de quem somos –, e Trump reforçou e legitimou isso de uma forma que é francamente aterrorizante.
Mas os insurrecionistas e os direitistas, inclusive católicos, que os encorajaram não são tudo o que somos.
Em menos de duas semanas, o segundo presidente católico da nossa nação – um homem decente – assumirá o comando e iniciará a longa e árdua tarefa de reconstruir a nossa democracia. Os católicos precisam embarcar juntos para ajudar, e não atrapalhar, esse processo.
Publicamos aqui o editorial do jornal National Catholic Reporter e Caminho Político. A tradução é de Moisés Sbardelotto. @CaminhoPolitico
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