Na avaliação de Fábio Belo, doutor em psicologia da UFMG, circulação de discursos de ódio incentiva atitudes agressivas de indivíduos contra grupos considerados mais vulneráveis ou minorias. Casos de violência gratuita têm se tornado frequentes no país. O mais recente ocorreu na madrugada desta segunda-feira (29/07), em São Paulo, quando o motorista de um Porsche perseguiu e atropelou um motociclista por supostamente ter quebrado o espelho retrovisor de seu carro. Ele foi preso em flagrante e vai responder por homicídio com dolo eventual, por motivo fútil, (quando não há intenção direta de provocar a morte, mas o agente assume o risco ao realizar uma conduta perigosa).
Em junho, em Santos, um idoso de 77 anos também foi morto por um motivo banal. Segundo a Polícia Civil, o motorista de um Jeep atingiu o homem no peito com um chute depois de um desentendimento no trânsito. A vítima caiu no chão, chegou a ser socorrida, mas morreu em seguida. O agressor vai responder pelo crime de lesão corporal seguida de morte e segue preso.
Em março, um policial militar baleou o entregador Nilton Ramos na perna depois que a vítima se recusou a deixar o lanche na porta da casa do cliente. Em agosto de 2023, a mãe de um estudante fez xingamentos racistas contra uma professora da Escola Municipal Eliete Araújo, em Petrolina (PE).
Segundo o doutor em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Fábio Belo, essas agressões têm em comum o fato de serem direcionadas a grupos sociais considerados mais vulneráveis e a minorias sociais, como mulheres, negros e pobres.
"Contexto sócio-histórico capitalista no qual vivemos incentiva muito fortemente atitudes individualistas, narcisistas que não leva em consideração o outro, que de alguma maneira fomenta a violência individual", ressalta Belo.
DW: O que caracteriza essa prática de violência gratuita?
Fábio Belo: Há duas grandes fontes importantes para serem mencionadas sempre. A primeira é a história subjetiva de cada um dos participantes desse tipo de violência. A segunda é o contexto sócio-histórico que excita esse tipo de ação. A história subjetiva se liga a algo presente em todos nós: o desejo sádico de fazer o outro sofrer. A maioria de nós consegue reprimir, recalcar, como diz Freud, esse sadismo infantil e se contentar com as fantasias de agressão.
A segunda fonte é o contexto sócio-histórico capitalista no qual vivemos, que incentiva muito fortemente atitudes individualistas, narcisistas que não leva em consideração o outro, que de alguma maneira fomenta a violência individual. Essa lógica encontra na política modelos que idealizam a violência como solução para os nossos conflitos morais. Particularmente a extrema direita tem reiteradamente desempenhado um papel de elogio à violência como resolução dos conflitos políticos. Um governador, por exemplo, pode comemorar como se fosse um gol, a morte de um criminoso.
Portanto, essas duas fontes acabam interagindo uma com a outra, muitas vezes fazendo com que alguns sujeitos menos controlados passem ao ato e deem vasão ao seu sadismo porque se sentem legitimados para tanto.
Por que pessoas que não têm nenhum tipo de transtorno ou questão de saúde mental extrapolam esse campo da fantasia e partem para agressão?
Não se trata de jeito nenhum de situar o campo da violência humana no campo da psicopatologia pura e simples. "Ah, é um louco, é alguém que não conseguiu se controlar", de jeito nenhum. É preciso sempre convocar o sujeito na sua particularidade à responsabilidade. Todos nós temos desejos sádicos, violentos, individualistas, narcisistas, e, no entanto, fazemos a escolha de renunciar a esse desejo e controlá-lo.
Contudo, um conjunto de fatores leva o sujeito à atuação. Se há uma atmosfera social e política que me legitima a não renunciar ao meu desejo sádico quando os afetos estão hiperaquecidos, se eu não tenho uma história individual que me ajudou a recalcar e a reprimir, e se eu estou mobilizado por esses discursos perversos do campo político-religioso que autoriza tratar o outro como objeto, é no momento em que se está tomado pelo afeto do ódio que esse clique acontece.
Apesar da história individual, há uma correlação de forças que se repete entre agressores e vítimas nessas situações de violência banal? É possível identificar um perfil?
Existem as linhas de força que podemos chamar de vias facilitadas do ódio, que são inscritas nos códigos sociais e que estabelecem as relações de poder. As vítimas mais frequentes são aqueles considerados os mais fracos e que efetivamente não conseguem se defender. Então, a criança em primeiro lugar, e todas as minoria. Incluem-se aqui as mulheres, em especial as negras e pobres, e também a população negra e LGBTQIA+.
O modelo do agressor é esse de uma violência não contida e legitimada, do ódio como resolução de conflito. Quem está mais afastado desse ideal vai ser aquele que vai ser mais violentado e tomado como objeto. Na medida em que se animaliza o objeto, ele se torna matável.
E isso vale também para as políticas de estado claramente necropolíticas, ou seja, se definem populações matáveis, em particular a população LGBT, periférica e a população negra pobre. É uma população no Brasil absolutamente matável e torturável. Essa violência quando não é física, ela é simbólica e, de maneira geral, escolhe esses objetos e aparece o tempo todo na internet, nas redes sociais, na televisão.
É possível falar em uma erosão da empatia como sintoma social?
É exatamente disso que se trata o sadismo, é o avesso proporcional da empatia. O prazer de fazer o outro sofrer, de objetificar, de destituir o outro de subjetividade é produzido pela erosão da empatia. Eu não me reconheço no outro, quanto mais diferente de mim é o outro menos eu me reconheço. Ora, essa monstruosidade política que é o cristofascismo, não só no Brasil, mas nos Estados Unidos também, vai a um só tempo defender valores supostamente cristãos, mas executando no discurso e nas suas práticas o avesso do que está no discurso do cristianismo.
Essa lógica de alguma maneira toma para si os discursos religiosos e morais na defesa da família, por exemplo, mas mantém intacto o jogo de poder que mantém as classes sociais dominantes no seu lugar e as classes que estão na posição de objeto também. O poder se mantém no lugar patriarcal, machista, ultraviolento, racista, profundamente homofóbico e misógino.
Quais são as consequências da reprodução desse tipo de comportamento?
A consequência é a pior possível, é aquela que o Durkheim descreveu como anomia, onde a lei do mais forte vale. Há um certo tipo de convivência que a psicanálise chama de esquizoparanóide, ou seja, a divisão das pessoas em boas e más, sem nuances, dois grupos absolutamente separados.
A atuação contra o grande mal é sempre mortífera, sádica, violenta, desobjetalizando o outro, ou seja, fazendo o outro desaparecer. Não se quer o convívio com o outro, nem acolhimento. Todas as vias de solidariedade e democracia, da manutenção da diferença são interrompidas por esse pacto claramente esquizoparanóide.
É possível prevenir esse tipo de violência gratuita? O que precisa mudar?
Não há outro caminho senão o caminho da educação, e dentro do caminho da educação é preciso pensar nas políticas públicas ligadas à propaganda e ensino, que vão desde as diretrizes básicas, com matérias como direitos humanos, democracia, política, história da ditadura e do nazismo.
São indispensáveis políticas públicas que desenvolvam ainda mais a ideia de fazer valer a democracia a partir da lógica dos direitos humanos. Essa é uma invenção burguesa, inclusive. Importante também é o cerceamento muito concreto das redes sociais e criminalização dos discursos de ódio, em especial aqueles atrelados a fake news, que são hoje a arma mais importante da extrema direita.
Até o incremento do serviço de psicologia, por exemplo, no serviço público de saúde. A gente precisa de psicólogos ocupando esses lugares também de saúde para pensar efetivamente como dar tratamento às populações vulneráveis, hiperviolentadas. Então são políticas que têm um espectro gigantesco aqui de ações ainda para ser feito.
Jéssica Moura/Caminho Político
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