Um ano após crise humanitária declarada, indígenas criticam falta de coordenação do governo para controle da doença e retirada de invasores do território. Na aldeia Surucucu, a mais populosa da Terra Indígena Yanomami, doentes chegam a todo momento. Eles vêm de outras comunidades distribuídas pelo vasto território que abarca parte dos estados do Amazonas e Roraima, e há anos enfrenta uma grave crise humanitária causada pelo garimpo ilegal. Apesar de inúmeras denúncias de lideranças daquele povo, foi só em janeiro de 2023, quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a Presidência, que a situação de calamidade foi escancarada. O governo iniciou uma ofensiva contra a emergência sanitária, mas o alívio foi momentâneo.
"Muitos pacientes estão sendo resgatados, e 99% dos casos são de malária. Tem muita desnutrição também", relata à DW Junior Hekurari Yanomami, presidente da Urihi Associação Yanomami e membro do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi).
Depois de outubro de 2023, quando parte das forças de segurança deixaram a Terra Indígena (TI), os invasores retornaram – em menor número, mas com potencial de destruição.
"O novo governo enviou muitas equipes de saúde, vieram muitos voluntários também. Eles salvaram muitos yanomami e a gente enxergou uma 'luz'. Mas os garimpeiros agora estão voltando", detalha Junior.
Na noite de janeiro em que a DW conversou com o representante do Condisi, ele estava assustado com a passagem a pé de garimpeiros pela mata perto de Surucucu. A presença dos invasores na região, que concentra cerca de 5 mil yanomami, era incomum.
Malária e desnutrição permanecem
Até meados de janeiro, havia 150 indígenas internados em Surucucu. Os casos mais urgentes seguem para Boa Vista, capital de Roraima, que fica a uma hora de avião. Nos últimos 12 meses, sete postos de saúde na TI Yanomami, também chamados de polo base, foram reativados. Agora são 36 em atividade. O único que permanece fechado é o de Kayanaú – a ameaça trazida pelo garimpo nas proximidades intimida os agentes de saúde.
Equipes da ONG Expedicionários da Saúde (EDS) viram a situação de perto. Elas fizeram diversas incursões no território ainda em 2022, sob Jair Bolsonaro. Em 2023, montaram um centro cirúrgico móvel e reformaram o polo base em Surucucu, além de redes de água e esgoto. Mas tiveram que se retirar do território antes do que previam.
"O governo queria manter apenas suas equipes", diz Marcelo Moraes, coordenador de comunicação da EDS, que tem mais de 20 anos de experiência em comunidades na Amazônia.
Muitos médicos que chegaram não tinham experiência com saúde indígena, afirma. "Foi-nos dito que não precisavam de médicos especialistas. Mas o que a gente via era o contrário: a situação exigia principalmente pediatras, infectologistas, emergencistas, e uma estratégia de levar os médicos para dentro das comunidades, para visitar as malocas. Mas isso não acontecia", critica o porta-voz da EDS.
A lógica comum no fluxo de trabalho de hospitais de grandes cidades não tem o mesmo efeito em comunidades indígenas, diz Moraes. Esse choque de cultura pode ter contribuído para a permanência da crise sanitária, sugere.
Questionado sobre o perfil das equipes médicas enviadas, o Ministério da Saúde não respondeu a tempo do fechamento desta reportagem. A pasta informou que, no último ano, o número de profissionais em atuação no território foi de 690 para 960, um aumento de 40%.
"Forças Armadas de braços cruzados"
Embora a situação tenha melhorado nos últimos 12 meses em relação aos anos do governo de Jair Bolsonaro, o estado de emergência causa revolta. "Crianças continuam morrendo de desnutrição. O Estado ainda não se fez presente de forma efetiva no território yanomami", critica Ivo Macuxi, assessor jurídico do Conselho Indígena de Roraima (CIR).
Para Ivo, faltou coordenação das operações por parte do governo federal. Num documento enviado ao Executivo em outubro, o CIR sugeriu que a Marinha instalasse um ponto de fiscalização fixo no rio Uraricoera para barrar a entrada de garimpeiros, o que não foi atendido.
"Esperávamos um pouco mais. Sabemos que os militares muitas vezes não garantem apoio logístico, que agentes do Ibama muitas vezes ficam sozinhos. Isso fragiliza as operações", comenta Ivo.
A crítica às Forças Armadas é recorrente. Diversas fontes ouvidas pela DW reclamam da postura do Exército, que tem um pelotão de fronteira na região. "É difícil o Exército dar a mão para nós", afirma Junior Yanomami.
Questionado, o Ministério da Defesa respondeu à DW por e-mail citando apenas números: em 2023 cerca de 1.400 militares teriam transportado 766 toneladas de alimentos e materiais, e prendido 165 suspeitos encaminhados a órgãos de segurança pública.
Para Ivo Macuxi, os números não dizem nada. "Os militares têm essa doutrina da soberania nacional. Mas eles não conseguem interpretar que o aumento de garimpo na TI é uma ameaça à soberania. Eles ficaram de braços cruzados vendo os yanomami morrerem. Ficam de braços cruzados vendo os garimpeiros invadirem as terras."
Retirada dos garimpeiros: momento delicado
Em meio à paralisação de servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), a retirada permanente dos invasores ficou mais complexa.
"O momento é delicado. A operação que já estava em andamento segue nos yanomami. Lá a situação é diferente pela gravidade, a nossa presença foi permanente no ano passado", afirma à DW Jair Schmitt, chefe da fiscalização do Ibama.
Dados divulgados pelo instituto apontam em 2023 uma redução de 85% do desmatamento causado por novas áreas de mineração, em comparação com o mesmo período do ano anterior.
A estratégia para expulsar os garimpeiros até então, diz Schmitt, era focada na interrupção das linhas de abastecimento que chegavam aos acampamentos e a destruição de equipamentos. "A logística para trabalhar é complexa. A fase agora é de planejar ações em conjunto com outros órgãos no terreno, e avançar nas investigações de punição das cabeças envolvidas no garimpo."
Segundo a contagem de lideranças indígenas, atualmente há cerca de 8 mil invasores no território. Antes do início das operações, em 2023, eles estimavam a presença de 25 mil.
"Queremos participar"
Um ano após ter declarado a situação de emergência na TI Yanomami e de ter recebido críticas pela continuidade do grave cenário, Lula anunciou a criação de Casa de Governo permanente em Boa Vista. Com a previsão de investir R$ 1,2 bilhão ao longo de 2024, o órgão especial terá a meta de implementar medidas de proteção aos indígenas.
"A gente quer acompanhar, apontar, sugerir, recomendar. Durante este ano, o governo trabalhou sozinho e não acertou, e agora queremos trabalhar em conjunto. Para acertar", diz Junior.
Nádia Pontes/Caminho Político
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