Uma década após o desaparecimento e assassinato do pedreiro Amarildo de Souza por PMs na Rocinha, família ainda aguarda indenizações e continua luta para localizar restos mortais do pedreiro. Depois de comover o Brasil em 2013, o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza completa dez anos nesta sexta-feira (14/07) sem que sua viúva e seus seis filhos tenham recebido qualquer compensação por danos morais e materiais pelo desaparecimento forçado do pai, morto na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, após ser levado por policiais. A data será marcada pelo lançamento de dois documentários que buscam jogar novas luzes sobre o caso, que nunca foi inteiramente esclarecido. A família aguarda respostas até hoje sobre onde o corpo de Amarildo foi ocultado.
No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a condenação do estado do Rio a pagar pensão e indenização por danos morais de R$ 3,5 milhões para a família – R$ 500 mil para a companheira e para cada um dos seis filhos de Amarildo. Apesar de a sentença ser final, o advogado que representa a família estima que os valores, com correção de juros e inflação, ainda levem três anos para sair.
"Com cautela, eu estimaria o pagamento para 2026", diz o advogado João Tancredo, conhecido por representar vítimas de violência estatal e por sua militância nos direitos humanos.
Segundo Tancredo, a demora é fora da curva para casos do gênero, que, em sua experiência, levam cerca de seis anos até que as famílias sejam indenizadas. O caso Amarildo, entretanto, ficou paralisado por longos períodos no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e no STJ.
"Aí é o caos. O que atrasou foi a demora dos tribunais, e agora o prazo para pagamento de precatórios vai ser a pá de cal", lamenta Tancredo, referindo-se à lentidão com que o pagamento de precatórios – títulos emitidos para o pagamento de indenizações determinadas por sentenças judiciais contra o Estado – costumam ser processados.
Corre na justiça separadamente uma ação que pede indenização para cinco irmãos de Amarildo, para a qual o STJ já acenou positivamente.
Anderson Gomes de Souza, filho mais velho de Amarildo, hoje com 31 anos, diz que a morosidade é uma nova violência do Estado contra sua família, e que as indenizações parecem um dinheiro "praticamente amaldiçoado".
"As pessoas acham que estamos ricos. Para mim e meus irmãos, arrumar trabalho está difícil. Mas não recebemos um real do Estado”, afirma ele. "Esse dinheiro não vai trazer a vida do meu pai de volta. Mas vai ajudar um pouco a nossa família. Pelo menos para minimizar a nossa dor, que é uma coisa que não vai sair do nosso peito nunca. O Estado tem que pagar pelo seu erro."
Tortura seguida de morte
No dia 14 de julho de 2013, Amarildo saiu para comprar limão e alho para temperar peixes que havia acabado de pescar, e planejava grelhar em uma birosca na Rocinha, onde nasceu e viveu seus 42 anos de vida.
Foi parado por policiais no bar, e levado para averiguação na sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no alto da favela. Cerca de 300 agentes realizavam a "Operação Paz Armada", para combater o tráfico de drogas na Rocinha. Amarildo nunca mais voltou para casa.
Sua família precisou batalhar para que o caso fosse investigado e para desmentir versões de que Amarildo tinha envolvimento com o tráfico.
"Onde está o Amarildo?" A pergunta reverberou mundo afora com manifestações cobrando respostas sobre o sumiço do pedreiro. "A favela desceu por causa do Amarildo. Fechamos o túnel (Zuzu Angel) e fomos até a Gávea. Fomos parar no Leblon, na casa do (Sérgio) Cabral (o então governador, posteriormente preso por desviar centenas de milhões de reais dos cofres públicos)", lembra o advogado Tancredo, que acompanhou a família desde os primeiros dias após o desaparecimento. "O Amarildo era muito querido, e o caso ganhou uma força enorme."
Investigações do Ministério Público concluíram que ele foi torturado até a morte em um contêiner da base da UPP da Rocinha. Depois teve o corpo ocultado em local desconhecido.
Em fevereiro de 2016, 12 policiais militares foram condenados pelo desaparecimento e morte de Amarildo. Os agentes públicos receberam penas de 9 a 13 anos de prisão por tortura seguida de morte, por ocultação de cadáver e fraude processual. Em 2019, quatro deles tiveram as sentenças revertidas na segunda instância e foram absolvidos.
Em 2021, o major Edson Raimundo dos Santos, que comandava a UPP, foi reintegrado aos quadros da Polícia Militar do Rio depois de cumprir períodos curtos de pena em regime semiaberto e prisão domiciliar. Ele recebera a maior pena (de 13 anos e 7 meses de prisão), e de acordo com a sentença, fora o "mentor intelectual da tortura".
Campanha e manifestações
O desaparecimento ocorreu na esteira das manifestações de junho de 2013, e a forte mobilização social deu cunho nacional à campanha que exigia respostas sobre o caso. O Brasil daquela época vivia a Copa das Confederações, e uma visibilidade mundial inédita com a expectativa de sediar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.
"Esta não é uma pauta regional", dizia uma filipeta convocando uma manifestação em São Paulo. "Os cidadãos são vítimas de violência policial em todas as periferias do país! A luta não tem fronteiras, por isso, exigimos saber onde está Amarildo e a desmilitarização dessa instituição opressora e assassina chamada Polícia Militar."
As Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs), modelo de policiamento comunitário que vinha sendo implantado nas favelas do Rio durante o governo Sérgio Cabral, prometiam romper com o histórico de operações policiais violentas em comunidades do Rio, mas o caso Amarildo evidenciou que a violência policial continuava presente nas UPPs.
Nascido e criado na Rocinha, Amarildo era uma pessoa humilde e benquista na comunidade, segundo pessoas próximas. Morava com os seis filhos e a companheira, Elizabete Gomes da Silva, em um barraco de um cômodo só. Era tudo junto e misturado: tanque, pia, geladeira, vaso sanitário, uma TV no chão, uma prateleira para roupas e uma cama de casal onde Amarildo e Bete dormiam com os caçulas, além de dois colchões que os demais filhos compartilhavam à noite, em duplas.
Chegar àquele nível de pobreza havia sido um progresso recente: até alguns anos antes da morte de Amarildo, o barraco era ainda mais precário, construído com madeira. Os ratos entravam e saíam a seu bel-prazer, provenientes do valão de esgoto a céu aberto que corria atrás da casa. Alguns anos antes de morrer, Amarildo juntou suas economias e conseguiu erguer um barraco de alvenaria com as próprias mãos, tijolo sobre tijolo, com a ajuda dos filhos e parentes.
"Eram oito pessoas em um quadrado, mas a gente sempre foi feliz", lembra Anderson. "Todo mundo sempre estudou. Meu pai sempre nos ensinou o que era certo e errado, a respeitar os mais velhos, a fazer trabalho honesto. Era pobre mas nunca deixou faltar nada para a gente. Se não tinha carne, saía para pescar e voltava com os peixinhos dele. Ou fazia um biscate e voltava com uma dúzia de ovos. Por isso a família se manteve forte. O aperto é muito grande para a gente."
Documentários e novas fontes
O aniversário de morte de Amarildo está sendo marcado pelo lançamento de dois documentários que buscam aprofundar a compreensão do caso.
Cadê o Amarildo?, da Globoplay, dirigido por Rafael Norton, busca esmiuçar os acontecimentos daquele dia e encontrar novas respostas para o caso a partir de entrevistas com testemunhas que nunca foram ouvidas, além de conversas com familiares e autoridades do Rio de Janeiro.
Já Cadê você, realizado pela ONG Rio de Paz, dirigido por Humberto Nascimento, insere o caso no contexto mais amplo de violência urbana do Rio de Janeiro.
Além de conversar com familiares de Amarildo e refletir sobre o caso em si, o filme trata de outros casos de desaparecimentos no Rio e da invisibilidade que têm para a sociedade – e estabelece conexões com desaparecimentos forçados da ditadura militar, problematizando os métodos de uma polícia que nunca se desmilitarizou.
De acordo com pesquisa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec), o estado do Rio tem em média 5 mil desaparecimentos por ano – e soluciona menos de metade dos casos (44,9%).
"Esses crimes somente são elucidados quando a sociedade civil se organiza e vai às ruas", diz Antonio Carlos Costa, diretor da Rio de Paz.
Para Anderson, as obras são importantes para que o caso não seja esquecido, e para seguir pressionando o Estado a dar uma resposta.
"Se ficarmos parados no tempo esperando a indenização sair, vamos morrer de fome", afirma. "Se não fosse pela nossa luta e pela ajuda de parentes, amigos, artistas, a nossa força de vontade de correr atrás, ainda estaríamos naquele mesmo barraco pequeno, sofrendo, sem nada, com aquela lembrança do nosso pai. Ele era a coluna da casa."
Vida que segue na Rocinha
Hoje, Anderson se revolta ao pensar que os policiais que participaram do assassinato de seu pai já estão soltos e vivendo suas vidas, podendo curtir suas famílias, embora tenham destruído a sua.
Toda a família de Amarildo segue vivendo na Rocinha. Elizabete e dois de seus filhos moram na casa que a família conseguiu comprar graças a um leilão beneficente organizado pela empresária Paula Lavigne em 2013. Seus filhos mais velhos casaram, saíram da casa e já têm filhos – netos que Amarildo não pôde conhecer. Já a filha caçula, Milena, hoje com 16 anos, vive com a tia. Segundo Anderson, ela é quem sente mais a falta do pai. Tinha só 6 anos quando ele morreu. "Ela era muito apegada nele. Ele só levava ela no colo, na ‘corcunda', para um lado e para o outro", lembra.
Anderson vive de bicos na Rocinha. Faz trabalhos de mototáxi, entrega quentinhas, carrega material de construção no lombo pelas vielas da comunidade, usando a força e o molejo do corpo, como aprendeu desde cedo com o pai – que era conhecido na comunidade como "Boi". Já sua mãe, que recebe uma pensão de um salário mínimo mensal pela morte de Amarildo, tem feito algumas diárias de faxina que a irmã de Amarildo, Maria Eunice, emprega doméstica, arruma para ela.
"Vira e mexe a minha mãe tem crises pelo que aconteceu com meu pai. Às vezes ela bebe, ou fica mal quando vê policiais. Ela suportou muita coisa." Anderson se preocupa que a mãe está ficando mais velha e cansada, e começa a temer que a indenização não chegue a tempo de ajudá-la. "Estou começando a achar que esse dinheiro vai ser para os nossos filhos. Para a próxima geração", diz.
Anderson ainda tem esperança de que, um dia, um dos policiais envolvidos revele onde está o corpo de seu pai. "Perdemos nosso pai de um jeito que ninguém quer perder, mas pelo menos queremos ter um enterro digno. Saber que ele está ali. Isso ia aliviar um pouco a nossa dor."
Júlia Dias Carneiro/Caminho político
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