“O jornalismo foi em grande parte responsável pela ascensão da extrema direita no Brasil”, diz Jorge Furtado

Jorge Furtado é gaúcho, tem 63 anos e uma carreira como roteirista e diretor cheia de sucessos, entre eles a série e os filmes O Homem Que Copiava e Saneamento Básico. Guel Arraes é pernambucano, tem 68 anos, e foi um dos criadores dos clássicos de humor Armação Ilimitada e TV Pirata, ambos da TV Globo.  Os dois já trabalharam juntos diversas vezes. Por exemplo nas séries A Comédia da Vida Privada e Decamerão, a Comédia do Sexo, e nos filmes O Coronel e o Lobisomem e Lisbela e o Prisioneiro. No ano passado, já com um ano de pandemia, dois de governo Jair Bolsonaro e muita aflição acumulada, decidiram escrever uma peça de teatro, coisa que nunca tinham feito em parceria.
Assim nasceu O Debate, lançado como livro e que tem logo na primeira página um aviso de Jorge Furtado: “Essa peça foi escrita na urgência dos acontecimentos políticos do Brasil do ano de 2021. Será filmada ou encenada assim que for possível e reescrita assim que for necessário”.
A filmagem finalmente foi possível no mês passado, e O Debate entra em cartaz nos cinemas na próxima quinta-feira (25). Dirigido por Caio Blat, o longa é protagonizado por Débora Bloch e Paulo Betti. Os dois formam um casal de jornalistas de TV —ele é o editor do programa, e ela, a apresentadora. Eles se separam depois de 17 anos juntos, mas continuam confidentes e colegas de trabalho. É nos bastidores do jornal que ela apresenta e ele edita que se passa a história –e justamente quando o programa está cobrindo o último debate presidencial entre dois candidatos sem nome, apresentados apenas como “o presidente” e “o ex-presidente”.
Ela, idealista e impulsiva, defende que o jornal divulgue uma pesquisa de última hora, ainda não registrada no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas que pode mudar o rumo da votação. Ele, racional e comprometido com as regras, não aceita interferir na cobertura. E é entre os dois que acontece de verdade um debate de ideias, ideais, pontos de vista, jornalismo, política, traições, filhos, amor, futuro.
Os dois roteiristas falaram à Folha via Zoom de onde moram –Jorge Furtado, em Porto Alegre, e Guel Arraes, no Rio de Janeiro. A entrevista foi focada em jornalismo e política, os temas centrais do filme:
Jorge: Esta trama nasceu da nossa ansiedade. A gente se falava todos os dias desde o início da pandemia pra saber o número de infectados, como tinha que se proteger, se ia ter vacina. Uma hora decidimos que tínhamos que botar isso no nosso trabalho, então começamos a escrever a peça.
Guel: Nem que fosse só para dizer para os nossos netos que a gente fez alguma coisa no período em que dois raios caíram simultaneamente no Brasil, a pandemia e o Bolsonaro. E o que dava para fazer naquele momento era um texto de teatro.
Jorge: A gente só sabia das coisas pelos jornais, o governo não falava nada. O jornalismo foi uma ilha de salvação nesses dois anos. Mas não foi sempre assim. O jornalismo brasileiro cometeu muitos erros sérios recentes e foi em grande parte responsável pela ascensão da extrema direita no Brasil, por ter comprado a Lava Jato fácil demais, por não ter investigado a fundo os interesses de todos.
Guel: A corrupção é uma pauta muito popular, porque o povo acha que corrupção é roubar dinheiro. Então vira uma maneira muito fácil de explicar a pobreza. Se você pegar tudo que foi roubado pela corrupção e multiplicar pelo número de brasileiros, não vai dar nem três reais para cada um. Mas vira uma explicação mágica, e o jornalismo trata essa questão de forma muito sensacionalista.
Jorge: Mas, nesse momento, e pelos próximos meses, o jornalismo é a nossa salvação. Teve um ex-presidente americano que disse uma vez que, se tivesse que escolher entre ter governo e ter jornalismo, escolheria ter jornalismo.
Guel: O jornalismo brasileiro não é santo nem demônio, mas quer ibope. É como quando a gente faz ficção na televisão. A gente procura histórias que inquietem o público, mas que sejam populares. E se o Ibope começa a cair, você faz a história ficar mais popular ainda. O jornalismo se parece um pouco com a nossa profissão. Então, na história da anticorrupção, acho que aquela cobertura estava dando tão certo, aquilo se tornou tão popular que pegou um embalo. E o campo progressista deu mole, perdeu a bola na questão da corrupção.
Jorge: E faltou apuração jornalística, principalmente na cobertura da Lava jato. Aquilo desde o início não era uma questão de justiça, era uma atividade política. E o jornalismo brasileiro mergulhou na história de cabeça, comprou o discurso da direita de que a corrupção era responsável pela pobreza.
Guel: Era um momento de democracia que a gente viu o país só melhorando, ficando cada vez mais democrático. Aí veio 2013, as pessoas na rua pedindo o impeachment da Dilma e a prisão do Lula, o jogo foi virando e quase que se jogou a água do banho com o bebê junto. E aí não tinha ninguém do PSDB, não tinha social democracia, o que tinha era uma extrema direita associada a coisas muito reacionárias, milícias, armamento, ideias muito antigas.
Jorge: Acho que o jornalismo brasileiro agora se deu conta de que as coisas passaram do ponto. A história da vacina foi a gota d’água. Porque o debate tem que existir e a gente tem que aprender a respeitar a opinião dos outros. Talvez tu consigas me convencer de que mais armas na mão das pessoas possa diminuir a violência. Talvez possa me convencer que tirar as cadeirinhas dos carros vai diminuir o número de crianças gravemente feridas nas estradas. Posso ouvir sua opinião em relação ao aborto, posso ouvir qualquer opinião. Mas contra a vacina não tem conversa. A humanidade não estaria aqui sem vacinas. Esse é um avanço da medicina e da ciência absolutamente inquestionável.
Guel: Mas escolhemos dois jornalistas para serem os protagonistas deste filme porque passei a ter bastante admiração pela profissão nos últimos três anos. Os jornalistas viraram o SUS da política. Assim como os trabalhadores do SUS estão para a saúde, os jornalistas estão para a política. Na linha de frente. A gente não podia fazer filme, série de TV, não podia produzir nada, não podia trabalhar. Então, nesse momento, eu queria ser que nem os jornalistas. Então fizemos a história de dois jornalistas.
Jorge: Jornalismo é uma profissão de alto risco. Botamos essa frase no texto e concordo com ela. Tem um diálogo também em que o personagem do Paulo Betti diz que é neutro, e o da Débora Bloch responde que ser neutro é uma coisa bem próxima de não fazer nada. E ele responde: “Eu estou fazendo jornalismo”.
Guel: E, apesar de não estar explícito na trama, está lá o homem mais velho, em posição de poder, casado com uma mulher jovem, que ganha menos que ele. Mas a personagem feminina neste filme é o motor da história, ela é a protagonista. A gente quis inverter um pouco esse padrão. Ela é combativa, defende o que acredita e é quem propõe a separação deles, uma separação diferente. Eles se separam para continuar juntos. É um novo modelo amoroso.
Jorge: Tudo é muito atual nesse roteiro, a gente chama de ‘cinema ao vivo’. Tem documentários feitos assim, a quente, em cima dos fatos. Mas fiquei pensando se esse não era um caso único de ficção tão grudada na realidade. Não é. Tem pelo menos um outro caso, que me faz pensar que melhor do que ser original é ter um antecedente tão ilustre, que é “O Grande Ditador”, do Chaplin. Ele fez no meio da Segunda Guerra satirizando o Hitler, sem dizer o nome dele, mas todo mundo sabe que é dele que se está falando.
Guel: Esse filme é muito diferente de tudo o que eu já fiz. Tem uma motivação diferente, uma ambição mesmo, de causar uma mínima interferência na realidade. Até formalmente ele é diferente de tudo o que eu e o Jorge já fizemos, porque ele é muito falado, tem diálogo o tempo todo. Como se a gente estivesse mesmo desabafando.
Jorge: Chamamos o Caio Blat para dirigir, e ele foi absolutamente surpreendente. Tinha domínio absoluto do set, sabia o roteiro de cor, fazia as marcações das cenas antes das filmagens. E acho muito curioso como três filmes políticos recentes foram dirigidos por atores. Além do Caio, neste filme, tem o Wagner Moura com Marighella e o Lázaro Ramos com Medida Provisória.
Guel: O Caio que escalou o elenco. É uma relação muito íntima essa do diretor com o ator, um é muito responsável pelo resultado do trabalho do outro [Paulo Betti e Caio Blat são ambos ex-maridos e pais dos dois filhos da atriz Maria Ribeiro, e essa é a primeira vez que trabalham juntos].
Jorge: Como diz um amigo meu, o Rio de Janeiro é que nem um baralho. Você mistura as cartas, depois bota tudo junto no monte e começa de novo.
Teté Ribeiro, em Mônica Bergamo, na Folha/Caminho Político
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