"Impedir mensalidade barra expansão da universidade pública"

Em meio a discussão impulsionada por PEC, especialista em financiamento do ensino superior propõe sistema de pagamento vinculado à remuneração futura dos universitários. A principal meta para o ensino superior público estabelecida no Plano Nacional de Educação (PNE) é ambiciosa: ela determina, entre outros pontos, que até 2024, 40% das novas matriculas em universidade a cada ano sejam em instituições públicas. E já é esperado que tal objetivo não seja alcançado. Em 2020, último ano com dados disponíveis, apenas 3,6% das novas matrículas foram na rede pública.
"A tendência é que o Brasil não cumpra a meta-chave para o ensino superior, com ou sem mudanças institucionais, pois o tempo até o fim do PNE é de apenas dois anos", afirma Paulo Meyer Nascimento, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e professor da Escola de Políticas Públicas e Governo da Fundação Getulio Vargas (FGV EPPG).
Além de lenta, a expansão do ensino superior brasileiro acaba concentrada na rede particular, algo difícil de mudar, ainda mais depois da entrada em vigor da Emenda Constitucional (EC) nº 95/2016, do teto de gastos.
Em meio a esse cenário de restrição de gastos, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 206/2019 propõe a cobrança de mensalidades nas universidades públicas como uma saída para conseguir mais recursos. Em maio, o relator da proposta na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o deputado Kim Kataguiri (UNIÃO/SP), deu parecer pela admissibilidade do projeto. De lá a agosto, seis deputados apresentaram requerimento para não serem mais coautores, e cinco retiraram a assinatura de apoio ao projeto. O parecer de Kim Kataguiri ainda precisa ser votado na CCJC.
Um dos maiores especialistas em financiamento do ensino superior do país, Nascimento tece críticas à PEC, mas considera que ela abre caminho para a discussão.
Doutor em economia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com período sanduíche na Universidade Nacional da Austrália, e mestre em economia da educação pela University College London (UCL), ele sugere a adoção de um sistema de pagamento vinculado à renda futura dos estudantes, algo existente na Inglaterra e na Austrália.
"É o meio do caminho entre o estudo totalmente gratuito e a cobrança de mensalidade para todos: você estuda de graça com retribuição se tiver retorno", explica.
Na entrevista a seguir, o especialista fala sobre o financiamento do ensino superior público e a PEC sobre cobrança de mensalidade e detalha sua proposta para o setor. "Não tem bala de prata para resolver o financiamento do ensino superior público no Brasil", afirma.
DW Brasil: O senhor considera a PEC da cobrança de mensalidade nas faculdades públicas uma boa alternativa para aumentar os recursos dessas instituições?
Paulo Meyer Nascimento: Não tem bala de prata para resolver o financiamento do ensino superior público no Brasil. A PEC tem muitas falhas, mas tem como vantagem a possibilidade de liberação de algum tipo de cobrança. Isso é importante por si só porque as universidades precisam de mais recursos. Impedir a cobrança de mensalidades e determinar que o orçamento deve ser todo público é barrar a expansão do ensino superior público. O orçamento, mesmo em países ricos, é limitado. Imagine no Brasil, que, independentemente dos problemas fiscais atuais, tampouco é uma nação rica.
Quais as principais falhas dessa PEC?
A primeira está nos pressupostos: achar que, por uma questão apenas de justiça social, tem que cobrar — aquela visão de que, na universidade pública, só estão os filhos dos ricos, então eles deveriam pagar. Ao mesmo tempo, se o ensino superior trouxer um retorno particular, nada mais justo que o aluno pagar. Em segundo lugar, uma PEC que apenas diz que haverá cobrança e o MEC dirá como será e definirá o recorte de isenção pode gerar muitos problemas. Se o projeto não adicionar recursos para as universidades porque quase todo mundo será isento, não vale a pena implementar. O recorte do Fies e do ProUni [Programa Universidade para Todos], por exemplo, que é de até três salários-mínimos per capita, pega 75% das famílias brasileiras.
Qual modelo o senhor propõe para o financiamento do ensino superior público?
Venho tentando construir uma proposta em que o ponto crítico é não gerar barreira para cursar a universidade. A pessoa poderia estudar de graça durante a graduação ou pós-graduação independentemente da renda atual e pagaria pelo curso depois da formatura. Se o aluno paga enquanto estuda, não sabe se vai usufruir do retorno esperado. Tem várias questões no meio do caminho que podem fazer com que parte significativa dos que entram na universidade não consigam esse retorno. Se você faz a cobrança no ponto de entrada, não considera isso e coloca uma barreira adicional. Então, para um indivíduo que acaba tendo longos períodos de desemprego ou de baixa renda, a faculdade sairia de graça ou quase de graça.
Como a cobrança funcionaria na prática?
No caso das universidades públicas e do Fies, poderíamos ter um sistema assim: você tem direito a não pagar nada enquanto estuda, mas cada crédito gera um valor ligado ao seu CPF e, após formado, quando tiver renda acima de certo valor, haverá uma tabela de cobrança. A faixa de isenção pode ser a mesma do Imposto de Renda: quem paga Imposto de Renda já está entre os 25% mais ricos da população. O pagamento da universidade viria como sobretaxa no Imposto de Renda. E não seria difícil de implementar no sistema do Imposto de Renda. Até poderia-se definir duas opções: um valor de anuidade X para quem quiser pagar enquanto está estudando e outro valor para quem for pagar só depois de formado.
Pagamentos vinculados à renda futura resolveriam os problemas das universidades públicas no presente, considerando que haveria um atraso entre a entrada dos alunos e o pagamento?
Mesmo com o delay, ajudaria. O fluxo para valer só viria a partir de quatro ou cinco anos. Em vez de congelar os repasses durante o tempo de maturação do modelo, o governo poderia assegurar um valor mínimo de repasse. A arrecadação com o sistema de financiamento vinculado à renda futura ficaria entre R$ 3 bilhões e R$ 7 bilhões a cada grupo de formandos. Em cenários intermediários, ficaria em R$ 5 bilhões, que é mais ou menos o que o governo passa de orçamento discricionário para as universidades. Há quem diga que é pouco, mas dobraria o orçamento discricionário, que é o passado para o reitor de fato administrar. Calculei esses valores com simulações usando algoritmo desenvolvido pela professora Lorraine Dearden, da UCL de Londres.
Quais seriam os maiores desafios para implementar um sistema assim?
Tem muita resistência por parte de grupos organizados. Acho muito difícil ter essa discussão hoje no Brasil. A gente deve ver algum desenrolar da discussão depois das eleições. E houve algum amadurecimento por causa da PEC. Antes era só um fla-flu, ou cobra ou não cobra. Agora tem um debate que poderá nos levar a, no futuro, aplicar um sistema parecido, depois de muita conversa com o governo e vários segmentos da sociedade civil.
Enquanto não ocorrem reformulações, é preciso ampliar o ProUni e o Fies para garantir mais matrículas no ensino superior?
O governo jamais poderá alcançar todo mundo que precisa com o formato atual. Inclusive tem gente que pode não ser elegível para ProUni ou Fies, mas poderia usar financiamento privado. O mercado de crédito para estudantes não é bem desenvolvido, mas o sistema de pagamento vinculado à renda futura viabilizaria o interesse das instituições financeiras, pois a Receita ajudaria a localizar o "bilhete premiado" (o aluno de classe média e oriundo da rede particular) que elas teriam interesse em financiar. O aluno de classes mais altas poderia pegar um financiamento particular, o que tiraria inclusive a pressão para que programas públicos atendam também quem terminou a escola na rede particular.
Ana Paula Lisboa/Caminho Político
@caminhopolitico @cpweb

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