Presidente disse que Merkel cancelou confinamento mais rígido na Semana Santa "porque efeitos de fechar tudo seriam mais graves que o vírus". Mas recuo ocorreu por dificuldades de planejamento e cronograma apertado. Em meio a seguidos recordes de mortes por covid-19 no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro comentou nesta quinta-feira (25/03) o anúncio da chanceler federal da Alemanha, Angela Merkel, de cancelar um lockdown rígido no país europeu previsto para a Semana Santa. Falando a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada, o presidente mentiu sobre as razões do cancelamento, encaixando de maneira distorcida o episódio em sua própria agenda negacionista da pandemia e de oposição a medidas rígidas de confinamento.
"A Angela Merkel, ia ter um lockdown rigoroso lá e ela cancelou, pediu desculpas. Ela falou lá, segundo a imprensa, que os efeitos de fechar tudo são muito mais graves do que os efeitos do vírus, palavras delas, não é minha não", disse Bolsonaro.
No entanto, a chanceler Merkel nunca disse que os efeitos de um fechamento geral seriam mais graves que os do vírus. Na quarta-feira, ao anunciar o cancelamento do lockdown de Páscoa, Merkel afirmou que a forma como a medida havia sido anunciada "foi um erro", mas citou que o recuo ocorreu por causa de dificuldades burocráticas, pelo curto espaço de tempo para implementar as medidas e pela natureza vaga do anúncio original. "Infelizmente, não planejamos suficientemente", disse a chanceler.
"A ideia de uma paralisação na Páscoa foi elaborada com as melhores intenções, porque precisamos urgentemente desacelerar e reverter a terceira onda da pandemia", disse a líder alemã. "No entanto, a ideia foi um erro. Havia boas razões para optar por ela, mas ela não pode ser implementada suficientemente bem nesse curto período de tempo", completou. Merkel não minimizou o vírus nem apontou que os efeitos econômicos seriam piores.
Na madrugada de terça-feira, Merkel e os 16 governadores da Alemanha anunciaram a imposição de um lockdown especial de Páscoa, que previa um longo feriadão de cinco dias consecutivos, obrigando o fechamento de quase todo o comércio, indústria e outros setores econômicos por dois dias extras – em tempos normais o fechamento de Páscoa tem duração de três dias. Além disso, igrejas não poderiam celebrar missas presenciais, entre outras medidas.
Caso fosse implementado, este seria um dos lockdowns mais rígidos já vistos na Alemanha em meses. A decisão original foi tomada após mais de 12 horas de reunião entre Merkel e os governadores. O objetivo era frear o crescimento de novos casos de covid-19 no país, que tem sido exacerbado pela circulação de variantes mais infecciosas.
Críticas
Mas ao longo de terça-feira o anúncio foi alvo de críticas em vários estratos da sociedade alemã, por razões variadas. Setores da economia reclamaram que o anúncio deixava muitas questões em aberto, não previa medidas financeiras para compensar lojistas e indústrias e não dava uma janela suficiente para fábricas reorganizarem sua produção.
Igrejas também afirmaram que não foram consultadas sobre a proibição de missas presenciais no feriado mais importante do cristianismo, e argumentaram que as cerimônias são possíveis com medidas básicas de distanciamento e higiene.
Autoridades municipais, por sua vez, apontaram que a imposição de medidas rígidas em tão curto espaço de tempo poderia provocar aglomerações no comércio nos dias que antecederiam o feriadão prolongado.
Já epidemiologistas reclamaram que as medidas não eram ambiciosas o suficiente e que uma paralisação de poucos dias acabaria sendo desperdiçada sem a adoção posterior de mecanismos mais abrangentes de testagem em massa no setor privado e aumento da taxa de home office.
Por fim, governadores que haviam concordado com o plano retiraram seu apoio, ao perceberem que teriam que aprovar legislação especial em seus estados para impor o lockdown especial. Alguns argumentaram que isso não seria possível nos poucos dias úteis que restam antes da Páscoa.
Mesmo com o abandono das linhas gerais do plano, algumas medidas vão permanecer em vigor. Reuniões privadas só serão possíveis com um máximo de cinco pessoas de duas residências diferentes (crianças com menos de 14 anos não são incluídas nesse limite). Autoridades também continuam a pedir para que a população não viaje durante a Páscoa.
Ainda que o lockdown especial de Páscoa tenha sido abandonado, a Alemanha continua a impor desde novembro uma série de medidas rígidas de restrição. Algumas foram flexibilizadas nas últimas semanas, mas ainda vigoram a obrigação de usar máscaras cirúrgicas (como a do tipo FFP2) no comércio e transporte público, e a proibição de atendimento interno em restaurantes. O atendimento em grandes lojas também só vem ocorrendo com hora marcada em grande parte do país. Algumas regiões com maior incidência de infecções vêm adotando medidas ainda mais rígidas. Grandes eventos também continuam proibidos.
Responsabilidade
Após as críticas sobre o lockdown de Páscoa, Merkel assumiu a responsabilidade pela confusão, embora a decisão original não tenha sido tomada exclusivamente por ela. "Sei que todo esse assunto gerou mais incertezas. Lamento profundamente e peço desculpas a todos os cidadãos", disse Merkel na quarta-feira.
A chanceler federal não tem poder para impor ou cancelar um lockdown nacional, pelas regras da Constituição alemã, que assegura um sistema federativo rígido no país. Desde o início da pandemia, Merkel tem sido obrigada a negociar com os governadores uma estratégia comum para o país. Sem apoio dos líderes regionais, Berlim não tem como reforçar medidas. Merkel também está a poucos meses do fim do seu último mandato como chanceler federal, o que tem enfraquecido a influência do seu governo.
Diferenças entre Brasil e Alemanha
Não é a primeira vez que Bolsonaro distorce informações vindas da Alemanha para promover sua agenda negacionista da pandemia. Em fevereiro, ele mencionou numa live um suposto "estudo de uma universidade alemã" que teria apontado que máscaras são prejudiciais para crianças. Mas o tal "estudo" não passava de uma enquete online distorcida que contou com participação desproporcional de pais negacionistas.
Ao citar a Alemanha, Bolsonaro também ignorou que a situação no país europeu é muito diferente da brasileira. Embora a Alemanha não esteja mais em uma situação mais confortável como no primeiro semestre de 2020, o quadro é menos dramático que o brasileiro. Desde o início da pandemia, a Alemanha registrou 75 mil mortes por covid-19, ou 90,4 por 100 mil habitantes.
O Brasil, por outro lado, acumula mais de 300 mil mortes, com taxa de mortalidade de 143,1 por 100 mil habitantes – e especialistas apontam que o número é provavelmente mais alto, já que o país não conta com capacidade adequada de testagem. A Alemanha também não registrou desde o início da pandemia episódios dramáticos como o colapso de hospitais.
Jean-Philip Struck/Caminho Político
@CaminhoPolitico
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