Pacto sigiloso entre mineradora, governo de Minas e Justiça é criticado por ter sido selado antes mesmo de os impactos do rompimento da barragem serem completamente mapeados. Muitos atingidos se sentem deixados de lado. Celebrado como um pacto histórico que colocaria fim a uma longa batalha na Justiça, o acordo assinado no início de fevereiro entre Vale, governo estadual e instituições de Justiça, após dois anos do rompimento da barragem em Brumadinho, em Minas Gerais, gerou dúvidas e indignação entre os atingidos. O acordo foi negociado em sigilo entre a mineradora e o governo estadual de Romeu Zema, com mediação do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O documento, de 130 páginas, estipula uma indenização de 37,7 bilhões de reais para atenuar os impactos da tragédia, quase R$ 20 bilhões abaixo do que havia sido pedido inicialmente pelo estado.
Com acordo assinado, porém, algumas ações judiciais voltada para a reparação de todos os danos causados pela Vale ao meio ambiente e às comunidades foram extintas.
O problema, apontam fontes ouvidas pela DW Brasil, é que o pacto não abrange todos os pontos que esses processos, agora sem validade, pediam. O documento entre Vale e órgãos públicos foi finalizado antes mesmo de os impactos do rompimento serem completamente mapeados.
Sem estimativa total dos danos
"Avaliamos que o acordo não contemplou as ações de reparação dos danos socioambientais, principalmente, ao considerar que não foram ainda concluídos os estudos”, avalia a Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social, Aedas, consultada pela DW Brasil.
"Do ponto de vista processual, o referido acordo possibilita a responsabilização jurídica e a satisfação de parte das pretensões discutidas nas ações judiciais, naquilo que concerne aos danos coletivos e difusos. Nesse sentido, o acordo não contempla os danos individuais, os danos desconhecidos ou supervenientes e as condutas passíveis de responsabilização jurídico-penal”, diz a Coordenação e Acompanhamento Metodológico e Finalístico da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, por meio de sua assessoria jurídica.
Parte do levantamento dos danos estava sendo feito pelo Instituto Guaicuy, ligado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A entidade, escolhida pelo Ministério Público estadual para fazer esse diagnóstico junto aos atingidos por sua capacidade técnica e científica, integra o time das chamadas assessorias técnicas independentes, contratadas para diagnosticar todos os impactos socioambientais em tipos, extensão e formas adequadas de reparação.
O objetivo do relatório é descrever toda a relação de perdas e danos que podem receber indenização, com sua respectiva valoração, ou seja, o seu valor. Esse levantamento é feito de acordo com a percepção das pessoas atingidas - e não da empresa que causou toda a tragédia, no caso, a Vale.
"Esse documento é muito importante, pois ele vai guiar a reparação integral em todo seu processo”, explica o instituto sobre a complexidade do trabalho. Agora, após o acordo entre Vale, estado e instituições de Justiça ter sido fechado, ainda não está claro se esse relatório, chamado de matriz de danos, terá algum efeito prático.
Segundo o cronograma do instituto, o levantamento dos impactos, iniciado oficialmente em 2020, seria concluído em fevereiro de 2022.
Agonia da espera
Mesmo após dois anos da tragédia, há ainda comunidades que brigam para serem reconhecidas como atingidas pelo desastre em Brumadinho.
"O pessoal que vivia da pesca ficou sem seu principal meio de sobrevivência, os que viviam do lazer e do turismo também. A população começou a sofrer vários outros problemas em relação à saúde. Não temos segurança em relação à água”, afirma Maria Helena em depoimento ao Instituto Guaicuy. Ela vive em Cachoeira do Choro, no município mineiro de Curvelo, que não recebeu nenhum tipo de auxílio da mineradora até agora.
A estimativa inicial das assessorias técnicas é que mais 240 mil pessoas em 26 cidades ao longo da bacia do rio Paraopeba tenham sido afetadas pelo colapso da barragem da Vale. Naquele 25 de janeiro de 2019, o desmoronamento da estrutura flagrado por câmeras provocou a morte de 270 pessoas, destruiu casas, áreas de floresta, poluiu a água e alterou o modo de vida de comunidades. Famílias ainda aguardam a localização de onze vítimas que sumiram com a lama.
"Jogada política e de negócios”
Maria Teresa Corujo, do Movimento pelas Serras e Águas de Minas, diz estar chocada com os termos do acordo. Ela foi a única conselheira a se opor à ampliação da barragem da mina Córrego do Feijão numa votação polêmica, em 2018, com membros da Câmara de Atividades Minerárias e Conselho Estadual de Política Ambiental. Meses depois, a estrutura em questão romperia.
"Pra ela, a Vale, o acordo é ótimo porque a assembleia dos acionistas é em abril. O que ela vai dizer para o mercado e para o mundo é que está tudo resolvido”, avalia Corujo, lembrando a participação dos Ministérios Públicos (MP) federal e estadual e Defensoria Pública de Minas Gerais nas tratativas secretas.
Em novembro último, funções-chave no MP de Minas, que encabeçava muitas ações judiciais, foram trocadas. A nova coordenação seguiu as negociações sob sigilo até o acordo ser anunciado, em 4 de fevereiro último.
Procurado para comentar o caso, o MP estadual não respondeu as perguntas enviadas por e-mail até o fechamento dessa reportagem.
"É um acordo imoral na opinião de 99% dos atingidos”, opina Camila Leal, advogada e membro da Comissão de Atingidos de Casa Branca. "Foi viciado desde o início. Não consultaram as partes atingidas. Quem se beneficiou foi o estado e a Vale, que tem a governança de várias partes do processo de reparação”.
Para Andrea Zhouri, professora da UFMG e coordenadora do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta), trata-se de uma "jogada política e de negócios”, com objetivo maior do que de fato "resolver problema de reparação das vítimas do desastre”.
"O orçamento do estado de Minas é precário. Romeu Zema viu no desastre a possibilidade de fazer uma política de apelo eleitoral por meio das obras”, opina Zhouri em entrevista à DW.
Rodoanel por cima de áreas de conservação
Segundo o acordo, parte do dinheiro da indenização será usada na construção de metrô e de um rodoanel na região metropolitana de Belo Horizonte.
"Certamente, as ações civis públicas que foram extintas não previam a construção de um rodoanel como forma de compensar e reparar o desastre. O que ele tem a ver com o território impactado de Brumadinho?”, questiona Corujo.
O projeto é antigo e vinha sendo bloqueado porque, dentro outros motivos, corta duas unidades de conservação ambiental: Parque Estadual da Serra do Rola Moça e Serra da Calçada - além de comunidades históricas. Por outro lado, a zona que receberá o rodoanel tem uma grande concentração de mineradoras, inclusive a Vale.
"Essa obra é, de quebra, algo pleiteado pelas mineradoras, que precisam escoar seus produtos. A Vale também lucra com esse acordo porque não vai precisar gastar para construir infraestrutura para escoar o minério dela”, critica Zhouri.
Conselheiros do parque estadual tentam agora estudar traçados alternativos. "O rodoanel vai destruir praticamente toda a encosta da serra de Brumadinho. Estamos preparando uma nota de repúdio dizendo que o conselho consultivo é totalmente contra a obra que tem esse impacto”, comenta Camila Leal, uma das conselheiras.
Já a Vale diz que o acordo "foi fruto de um processo de mediação de alto nível” e que visa a uma solução célere”. Sobre o processo de negociação, criticada pelos atingidos, a mineradora rebate dizendo que "se mantém aberta ao diálogo construtivo com órgãos competentes, poder público, instituições de justiça e comunidades”.
Questionado pela DW sobre as negociações sigilosas com a Vale e a polêmica do rodoanel, o governo estadual se limitou a responder, por meio de nota, que as partes envolvidas assinaram um "termo de Medidas de Reparação em benefício das regiões atingidas e de sua população”, e que a assinatura "não prejudica as ações individuais por indenizações e criminais, que seguem tramitando normalmente”.
Como será feita a reparação aos atingidos
A indenização será distribuída em quatro frentes: programa de reparação socioeconômica, de reparação socioambiental, de mobilidade, de fortalecimento de serviço público. Os projetos de demandas das comunidades atingidas não foram estabelecidos - eles serão executados pela própria Vale e muitos estão "sujeitos a avaliação de viabilidade técnica e financeira”, como observa o documento.
"O acordo prevê projetos de reparação que não estão relacionados a uma investigação de danos adequada. Além disso, não há disponível ao público um plano de reparação que pudesse indicar, por outras vias, quais seriam as ações necessárias de reparação ambiental. Tampouco houve um processo de escuta, participação e opinião dos atingidos, com robustez suficiente para que essas pessoas indicassem as ações de reparação”, critica a Aedas, parte da assessoria técnica independente contratada pelo MP.
Na visão de Andrea Zhouri, que acompanha o desenrolar da tragédia em Mariana, há cinco anos, e em Brumadinho, o acordo deixa os atingidos numa condição de vulnerabilidade.
"Quando o estado passa por cima do processo das vítimas e recolhe primeiro o dinheiro pra si, ele enfraquece o processo. Individualiza o pleito dos atingidos e deixa os indivíduos à própria sorte”, comenta.
Segundo a pesquisadora, os processos em Brumadinho e Mariana seguem a mesma lógica: a rentabilidade dos negócios. "Não estamos de fato reparando. A reparação permite que as pessoas retomem suas vidas em moldes equivalentes ou melhores de antes do desastre, e isso não está acontecendo”, conclui.
Nádia Pontes/Caminho Político
@CaminhoPolitico
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