Problemas enfrentados por jovens de regiões vulneráveis vão de queda na renda familiar e falta de internet para acompanhar aulas a agressões domésticas. Meninas são particularmente afetadas. Moradora do bairro do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, a adolescente Solange*, de 17 anos, prefere esquecer o ano de 2020: em abril, por causa da pandemia, seu pai perdeu o emprego e o isolamento social de sua família se transformou em um caos. "Ele, que já andava agressivo com minha mãe, começou a beber o dia todo. E descontava a insatisfação na gente", conta a jovem, que tem três irmãs mais novas. Em um desses episódios, Solange foi acudir a mãe e acabou apanhando também. "Falei para meu pai sair de casa naquele momento ou eu iria denunciá-lo", conta. Ele foi embora e nunca mais voltou. Ela não teve coragem de levar o caso às autoridades.
Estudante de uma escola pública de seu bairro, Solange concluiu o ensino médio com as aulas remotas, mas decidiu adiar o sonho do curso superior. "Foi tudo aos trancos e barrancos. Meu pacote de dados [do celular] é pequeno, mais perdi aula do que assisti", diz. "Quando a vida voltar ao normal eu volto a estudar."
Faxineira diarista, a mãe ficou dois meses sem nenhum trabalho. Para piorar, uma tia de Solange, que mora na casa ao lado e sempre foi muito próxima, teve covid-19 e precisou ficar internada. Felizmente, se recuperou.A situação de Solange não é incomum. Um levantamento realizado pelo Instituto Plano de Menina, projeto social que atua junto a adolescentes em regiões vulneráveis de dez estados brasileiros, identificou que 79% delas tiveram a renda familiar reduzida na pandemia, e 63% tiveram algum parente próximo diagnosticado com covid-19.
Além disso, houve relatos de violência doméstica, e todas as entrevistadas afirmaram que a crise sanitária desencadeou problemas de autoestima.
"O isolamento social tirou desses adolescentes as amizades e o acesso ao entorno. E, sobretudo no caso das meninas, as colocou diretamente nos problemas de casa, inclusive vivenciando situações de violência doméstica", avalia a fundadora do projeto, Viviane Duarte.
Neste ponto, a pesquisa identificou um problema de conscientização: 84% das meninas entrevistadas não soube explicar ou identificar o que pode ser considerado violência doméstica.
Estresse, desânimo, medo
Além disso, entre as ouvidas pelo levantamento Instituto Plano de Menina, 84% relataram crises de ansiedade, 79% um aumento de estresse e também 79% uma sensação constante de medo. Irritação (63%) e tristeza (68%) também foram sentimentos comuns desde que a pandemia começou. O isolamento – pelo mapeamento do instituto, 60% das adolescentes ficaram isoladas por pelo menos dois meses – é um fator mencionado como agravante.
A pesquisa comprova – e demonstra mais gravidade, provavelmente por conta do recorte social restrito a jovens e adolescentes em estado de vulnerabilidade – o que identificou outro estudo, realizado recentemente pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz): 48,7% dos adolescentes brasileiros apresentam um quadro frequente de mau humor, nervosismo e preocupação em decorrência da pandemia. As meninas são as mais afetadas: no recorte por gênero, 61,6% delas enfrentam essas dificuldades. Moradora do bairro paulistano do Piqueri, Raquel Alves Paiva, de 19 anos, conta que sentiu-se abalada "psicologicamente" por conta da "preocupação constante com a doença, não sair de casa, ficar sem alternativas".
"[Por causa do isolamento social] fiquei muito ansiosa. Sempre fui muito comunicativa, adoro contato com as pessoas. Tudo isso acabou, e isso interferiu bastante na minha qualidade de vida", diz Luana Ortiz Silva, de 21 anos, moradora do bairro paulistano de Pirituba.
"Os planos de 2020 foram completamente cancelados", concorda Juan Alberto Dutra da Silva, de 17 anos, morador do bairro Burgo Paulista, na zona leste paulistana. "A esperança é que agora em 2021 a gente possa colocar em prática nossos planos e sonhos."
Dificuldades financeiras e com aulas on-line
A queda da renda familiar obrigou muitos desses jovens a buscar alternativas. Para ajudar a complementar a renda da família durante o ano, Juan chegou até a fazer bolos para vender.
Mas o grande problema mesmo para esses jovens parece ter sido a adaptação ao ensino remoto – seja por dificuldades técnicas, seja por questões de concentração.
Segundo o Instituto Plano de Menina, 95% das entrevistadas teve ensino à distância na maior parte do ano de 2020. "Mas identificamos que 20% das participantes do projeto ficaram sem acesso à internet. Isso trouxe depressão, ansiedade além de problemas para acompanhar as aulas on-line", aponta Viviane Duarte.
Raquel, do Piqueri, reclama que a pandemia adiou "experiências" como o "sonho da faculdade". Estudante de Publicidade e Propaganda da Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado (Fecap), ela lamenta que o convívio estudantil tenha durado muito pouco porque "logo em seguida a pandemia começou, junto com o ensino à distância".
"Nos seis primeiros meses, não conseguia estudar direito, pois não tinha computador, e a internet estava ruim", relata. Ela conta ainda que a pandemia afetou financeiramente a família. "Meu pai [cobrador de ônibus] foi afastado do trabalho por vários meses", diz.
Também Juan também teve dificuldade em seu último ano do ensino médio. "Nos primeiros meses, achei difícil acompanhar, pelo celular. Depois, meu pai trouxe um computador do trabalho dele, na verdade para trabalhar em casa, e eu consegui ver algumas aulas. Acredito que só consegui acompanhar mesmo do meio do ano em diante", afirma. Além disso, ele reclama do sedentarismo e da falta de socialização. "O não ter de ir até a escola, o ficar em casa, tudo isso me deixou numa situação de menos movimento", diz. De acordo com o levantamento da Fiocruz, o percentual de jovens que não praticam nenhuma atividade física ao menos uma vez por semana saltou de 20,9% antes da pandemia para 43,4%.
Agora Juan está preocupado com o futuro estudantil. Ele aposta todas as suas fichas no resultado do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) deste ano para conseguir uma vaga em Marketing nas Faculdades Anhanguera.
Uma pesquisa recente realizada pela Rede Globo em parceria com o Instituto Toluna identificou que 83% dos jovens brasileiros se sentem mais pressionados em relação aos estudos por conta da dificuldades da pandemia.
Matheus Gabriel Souza Silva Vacas, de 20 anos, decidiu trancar a matrícula do curso de Tecnologia da Informação na Faculdade das Américas. Morador da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, ele avaliou que não seria possível compatibilizar o computador de casa com as aulas da irmã, de 12 anos, e as suas. "No meio do ano, senti que não aprendi nada. Decidi trancar o curso", diz ele.
"Perrengues com a convivência familiar"
Para Luana, que estuda Ciências Sociais da Universidade de São Paulo, o problema foi se concentrar nas aulas remotas com a família em volta. Oito pessoas, entre sua mãe, tios, tias, primos e primas, dividem o mesmo quintal – em casas separadas.
Ela conta que muitos amigos próximos a ela abandonaram a faculdade, "seja por não conseguirem acompanhar, por saúde mental, por questões financeiras". "Muitos também passam perrengues com a convivência familiar. Um número grande de pessoas em casa acaba influenciando negativamente o ambiente para estudar. É bem difícil", destaca.
Luana observa também que o período favoreceu o número de desavenças e agressões familiares. “A pandemia contribuiu para o aumento da violência doméstica, principalmente porque mulheres ficaram isoladas o dia todo junto a seus agressores. Muitas não têm acesso à internet e não conseguem fazer denúncias. Ou não conseguem sair de casa porque são ameaçadas", comenta.
"Também aumentou o estresse e a ansiedade. E isso pode desencadear agressões. Mais agressões passaram a acontecer, e as que já aconteciam foram intensificadas", diz ela.
A entrevistada pediu para ter seu nome trocado nesta reportagem
Edison Veiga/Caminho Político
@CaminhoPolitico
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