‘Francisco desafia a ideia – central no Estado-nação moderno – de que um país tem um direito absoluto sobre seus próprios recursos e territórios’. Artigo de Timothy Radcliffe

A Fratelli tutti se dirige a uma sociedade que se encontra diante de um desafio imaginativo radical. A opinião é do frade inglês Timothy Radcliffe, ex-superior da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) de 1992 a 2001.
Eis o texto.: Os seres humanos já são irmãos e irmãs ou é isso que eles devem se tornar? No centro desta importante encíclica, está a convicção de que a fraternidade é tanto a nossa identidade presente mais profunda quanto a nossa vocação futura. Somos convidados a nos tornarmos irmãos e irmãs em Cristo de um modo que dificilmente conseguimos imaginar agora. “Amados, desde agora já somos filhos de Deus, embora ainda não se tenha tornado claro o que vamos ser. Sabemos que quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque nós o veremos como ele é” (1João 3,2).
Trata-se, em parte, de uma aventura da imaginação. Por imaginação, não me refiro ao “imaginário”, a fantasia, mas sim uma transformação de como somos no mundo. A imaginação cristã é o poder do Espírito Santo que nos conduz para dentro de toda a verdade. É “o pensamento de Cristo” (1Coríntios 2,16).
Ainda no Gênesis, está em ação uma imaginação fraterna que nos leva da rivalidade fraterna homicida entre Caim e Abel, passando pelas tensões entre Isaac e Ismael, Esaú e Jacó, Lia e Raquel, até a reconciliação de José com os seus irmãos. Ser irmãos ou irmãs não é apenas e simplesmente uma questão de descendência biológica, mas também um crescimento na responsabilidade mútua, construindo a casa comum.
Somos levados da pergunta do Senhor a Caim: “Onde está Abel, teu irmão?” (Gênesis 4,9) até o abraço de José aos seus irmãos: “Eu sou José, o irmão de vocês, aquele que vocês venderam para o Egito. Mas agora, não fiquem tristes nem se aflijam porque me venderam para este país, pois foi para lhes preservar a vida que Deus me enviou na frente de vocês” (Gênesis 45,4-5). O Gênesis lança o fundamento da existência de Israel conduzindo-nos ao triunfo da fraternidade sobre a rivalidade.
Em Cristo, a história de Israel se torna o drama constante da humanidade. Já pertencemos uns aos outros, mas estamos apenas no início de imaginar o que isso significa. “Quando chegar o último dia e houver a luz suficiente na terra para poder ver as coisas como são, não faltarão surpresas!” (Fratelli tutti, n. 281).
O papa parte da proclamação de São Francisco de Assis de um amor “que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço” (Fratelli tutti, n. 1). Na verdade, como mostrou a Laudato si’, ele se estende ao Irmão Sol e à Irmã Lua e a toda a criação. O século XIII estava pronto para essa visão da fraternidade universal. As velhas hierarquias feudais estavam desmoronando; os mercadores, como o pai de Francisco, viajavam por todo o mundo conhecido: havia novas formas de comunicação e um novo senso do valor do indivíduo. O uso feito por São Francisco e por São Domingos dos primeiros títulos cristãos de “irmão” e “irmã” continha um valor utópico, a promessa de um mundo em que os estrangeiros que lotavam as novas cidades seriam abraçados.
A Fratelli tutti se dirige a uma sociedade que se encontra diante de um desafio imaginativo igualmente radical. No nosso planeta digital, as velhas instituições e hierarquias perderam a sua autoridade; o futuro é incerto. Como nos tempos de São Francisco, o encontro entre cristianismo e Islã é potencialmente perigoso. São Francisco pôs-se em viagem para encontrar o sultão Malik-al-Kamil (cf. Fratelli tutti, n. 3). Agora, o Papa Francisco estende a mão ao Grão-Imã Ahmad Al-Tayyeb.
O sonho da fraternidade universal tem menos influência sobre o imaginário coletivo do que no passado. “Reacendem-se conflitos anacrônicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta defesa dos interesses nacionais” (Fratelli tutti, n. 11).
O papa nos desafia corajosamente a imaginar outro modo de pertencermos uns aos outros. Ele rejeita a atual legitimação do direito absoluto à propriedade privada: “A tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de qualquer forma de propriedade privada” (Fratelli tutti, n. 120).
O nosso mundo se tornou um imenso centro comercial. Desde o século XVII, a falsa ideia de que tudo está à venda capturou o imaginário comum: terra, água, até os seres humanos com a explosão do tráfico de escravos. O meu corpo é uma propriedade minha, que eu posso dispor como quiser, desde a concepção até a morte. Os órgãos dos seres humanos são ceifados para o mercado.
O mais extraordinário é que o Papa Francisco desafia a ideia – central para o Estado-nação moderno – de que um país tem direito absoluto aos seus próprios recursos e ao seu próprio território: “Se toda a pessoa possui uma dignidade inalienável, se todo o ser humano é meu irmão ou minha irmã e se, na realidade, o mundo pertence a todos, não importa se alguém nasceu aqui ou vive fora dos confins do seu próprio país. Também a minha nação é corresponsável pelo seu desenvolvimento, embora possa cumprir tal responsabilidade de várias maneiras” (Fratelli tutti, n. 125).
Essa afirmação é incrivelmente contracultural. Ela subverte o pressuposto essencial da política contemporânea. Para alguns, ela pode parecer ingênua ou, no limite, desastrosa. Como isso pode fazer sentido quando, em todo o mundo, constroem-se muros e patrulham-se fronteiras?
No entanto, a imaginação cristã nasce do poder transformador da cruz e da ressurreição de Cristo. Na cruz, Cristo derrubou “o muro da separação” (Efésios 2, 14). Uma imaginação pascal está destinada a parecer “loucura para os pagãos” (1Coríntios 1,23) e a ser rejeitada por muitos.
Isso não significa que ela deva flutuar em um espaço incorpóreo. Ela exige ser encarnada nas estruturas políticas. Uma nova ordem mundial fraterna terá que prever “instituições internacionais mais fortes e eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por meio de acordos entre governos nacionais e dotadas de poder de sancionar. Quando se fala de uma possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito, não se deve necessariamente pensar numa autoridade pessoal” (Fratelli tutti, n. 172). As Nações Unidas devem ser reformadas.
Da mesma forma, ao tornar o caminho sinodal fundamental para o governo da Igreja, o papa convida os católicos a se reimaginarem como uma comunidade de irmãos e irmãs. Somente com base em tal transformação cultural é que o vertiginoso convite da Fratelli tutti – abraçar o estrangeiro como nosso irmão e irmã, membro da nossa família – aparecerá não como uma aterrorizante subversão de tudo o que nos é caro, mas sim como o caminho para a casa comum pela qual tanto ansiamos.
Nunca na história humana houve tantas pessoas em movimento, fugindo da violência e da guerra. Especialmente no Ocidente, vigiam-se os muros contra o imigrante e o estrangeiro que, teme-se, minarão as nossas comunidades locais, a nossa identidade e até a nossa segurança.
Como podemos começar a ver não estranhos ameaçadores, mas sim irmãos e irmãs? Acima de tudo, as nossas mentes devem ser libertadas do medo da diversidade. Toda cultura humana só é viva se consegue interagir de modo fecundo com aquilo que é diferente.
Cada um de nós deve a sua própria existência individual à diferença fecunda entre masculino e feminino. Se nos fecharmos hermeticamente ao estrangeiro, as culturas locais que trazemos no coração morrerão. A árvore na frente da nossa janela cresce porque, das suas raízes mais profundas até o topo dos seus galhos, desenvolve-se uma troca constante e vivificante com o ar, o solo, a água e inumeráveis insetos e bactérias. O isolamento é mortificante.
É preciso um salto da imaginação para ver a fraternidade universal e a solidariedade local como fatores que se reforçam mutuamente. “Não há abertura entre povos senão a partir do amor à terra, ao povo, aos próprios traços culturais. Não me encontro com o outro, se não possuo um substrato onde estou firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro e oferecer-lhe algo de autêntico” (Fratelli tutti, n. 143).
A fecunda interação com o meu irmão ou a minha irmã desconhecidos só é possível se eu aprender a olhar para eles com um olhar transfigurado, vendo a sua humanidade, a sua vulnerabilidade e a sua beleza. A comunicação digital abstrai da nossa particularidade física. As mídias digitais expõem as pessoas a uma “perda progressiva de contato com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações interpessoais autênticas. Fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana” (Fratelli tutti, n. 43).
Jesus lê o rosto de cada pessoa. “Pois ele conhecia o homem por dentro” (João 2,25). Se aprendermos a olhar uns aos outros com prazer, o desafio radical do papa não parecerá mais um ideal impossível, mas sim o único caminho para a alegria.
Por fim, uma “imaginação fraterna” implica que falemos aos outros como irmãos e irmãs. O papa entende o diálogo como muito mais do que uma troca de ideias. É o processo ascético por meio do qual buscamos imaginar o que significa ser essa outra pessoa, ser formados pela sua cultura, sentir o seu sofrimento e a sua alegria. Em uma conversa entre irmãos ou irmãs, buscamos juntos novas palavras, abrimos um espaço imaginativo no qual as barreiras desmoronam. É aquilo que Tomás de Aquino define como “latitudo cordis”, alargamento do coração.
Essas conversas nos levam para além das trocas típicas das mídias sociais, “uma troca febril de opiniões nas redes sociais, muitas vezes pilotada por uma informação mediática nem sempre fiável. Não passam de monólogos que avançam em paralelo, talvez impondo-se à atenção dos outros pelo seu tom alto e agressivo. Mas os monólogos não empenham a ninguém, a ponto de os seus conteúdos aparecerem, não raro, oportunistas e contraditórios” (Fratelli tutti, n. 200).
São também muito diferentes do discurso da nossa vida pública e política, que incita à desconfiança em relação aos outros e ao desprezo pelas suas opiniões. A Palavra de Deus nos convida a falar e a escutar uns aos outros, para que comece a se abrir um espaço imaginativo em que os filhos do Deus único se sintam em casa uns com os outros e na vida divina.
O artigo foi publicado em L’Osservatore Romano e Caminho Político. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Edição: Régis Oliveira. Foto: Vatican Media. Caminho Politico #caminhosemvolta

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