"Devemos aprender a não negar o mal, mas a enfrentá-lo, a suportar seu peso. É uma postura mental, mas também é outra tremenda lição desse vírus: correr para uma saída precipitada da crise estando ainda dentro dela, torna nossos comportamentos desordenados e irracionais. Não devemos esconder que estamos diante de uma tendência profunda da vida humana: negar a morte, o mal, o negativo em nome da ilusão de uma vida sem feridas e sem traumas", escreve Massimo Recalcati, psicanalista italiano e professor das universidades de Pavia e de Verona, em artigo publicado por La Repubblica e Caminho Político. A tradução é de Luisa Rabolini. Edição: Régis Oliveira. Foto: Arquivo. @caminhopolitico #caminhopolitico
Eis o artigo.
Todos nos lembramos da tese que distinguia a fase um da fase dois. Foi uma tese otimista inspirada no ideal de uma saída do trauma do Covid na forma de uma progressão linear. A passagem do tempo mais cruel da epidemia e do confinamento forçado, do fechamento, da doença e da morte (fase um) para o da retomada da vida, reabertura, retomada (fase dois), que deveria ter ocorrido sem muitas complicações.
O decurso pré-verão da epidemia confirmava essa expectativa. O tempo dois tinha suplantado o tempo um que apenas alguns incuráveis agourentos insistiam em lembrar. O verão italiano havia ratificado a extinção do vírus; com os números da epidemia quase zerados, a vida tinha recomeçado a viver e tudo havia voltado a ser como antes. Mas muitos sabiam que não seria tão simples, porque sempre que a morte e a doença estão envolvidas, quando se vivenciou um trauma tão terrível, não é fácil recomeçar.
Não existe fase um seguida pela fase dois como uma sua direta negação. A fase um e a fase dois nunca estão em uma relação simples de tese e antítese. É uma lição de vida da qual o Covid não tem exclusividade. Devemos sempre ter cuidado com o caráter maniqueísta das antíteses rígidas que tendem a colocar o bem, a luz, a abertura, a saúde, a vida de um lado e o mal, as trevas, o fechamento, a doença e a morte do outro. Uma mente democrática, como diria Bollas, não funciona por antítese, não funciona por divisões. Sabe muito bem que a pura contraposição dos opostos gostaria de evitar a dificuldade que sempre acompanha qualquer processo de integração.
A segunda onda em que nos encontramos objetivamente hoje confirma da maneira mais drástica possível que nunca é oportuno proceder por divisões rígidas.
Os próprios médicos experimentaram isso na própria pele, de forma dramática, no momento inicial da pandemia: as equipes de atendimento também foram as primeiras vítimas. A segunda onda mostra que qualquer tempo de saída do mal e da crise nunca é sem resquícios, sem rebotes, que às vezes podem ser ainda mais insidiosos do que o mal e a crise original.
Não o podemos esconder de nós mesmos: a tarefa que nos espera é aquela inevitável da convivência forçada com o vírus.
Mas para muitos resulta extremamente difícil aceitar o retorno do mal, sua não extinção. O impulso mais imediato é continuar, contra qualquer prova da realidade, a negar imaginariamente sua consistência (negacionismo) ou imputar ao governo - que obviamente não está isento de críticas - uma má gestão da emergência que seria a causa primária de nossos males. Essas respostas tendem a aliviar o fardo de nossa condição. Mas é necessário um esforço de pensamento mais árduo.
Em primeiro lugar, trata-se de reconhecer que ainda não acabou e de abandonar a ideia da nossa cura como resultado de um percurso linear, livre de acidentes e contratempos. É uma questão de renunciar à fantasia da "divisão" da fase dois que se segue à fase um, da luz que vem depois da escuridão.
Ao contrário a fase um e a fase dois, a vida e a morte, a luz e a escuridão - como em tudo no mundo - também aparecem nessa contingência traumática misturadas uma na outra. O caminho para a cura, para uma reabertura efetivamente plena da vida nunca é reto, mas em espiral, feito de passos à frente e recaídas.
Devemos aprender a não negar o mal, mas a enfrentá-lo, a suportar seu peso. É uma postura mental, mas também é outra tremenda lição desse vírus: correr para uma saída precipitada da crise estando ainda dentro dela, torna nossos comportamentos desordenados e irracionais. Não devemos esconder que estamos diante de uma tendência profunda da vida humana: negar a morte, o mal, o negativo em nome da ilusão de uma vida sem feridas e sem traumas.
Saber se manter diante do negativo, saber permanecer onde o medo é maior significa aprender a conviver com o estrangeiro. É a tarefa de uma vida que sabe viver à altura do que lhe acontece, o que, como lembrava Deleuze, é a única forma possível de uma ética capaz de levar em conta a realidade.
Artigo publicado por La Repubblica e Caminho Político. A tradução é de Luisa Rabolini. Edição: Régis Oliveira. Foto: Arquivo. @caminhopolitico #caminhopolitico
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