Marceneiros e jornalistas são expostos a diferentes exigências em suas práticas. Os profissionais de imprensa precisam se lembrar disso.Um dos mais canônicos textos do jornalismo brasileiro sobre ética é aquele escrito por Claudio Abramo (1923-1987), intitulado “O jornalismo e a ética do marceneiro”. Nele, o lendário jornalista, responsável pela modernização dos jornais O Estado de São Paulo e Folha de S. Paulo entre as décadas de 1950 e 1970, defende a indiferenciação da ética do cidadão comum e a que seria praticada pelos profissionais da imprensa. No escrito, Abramo afirma: "Sou jornalista, mas gosto mesmo é de marcenaria. Gosto de fazer móveis, cadeiras, e minha ética como marceneiro é igual à minha ética como jornalista – não tenho duas. Não existe uma ética específica do jornalista: sua ética é a mesma do cidadão. Suponho que não se vai esperar que, pelo fato de ser jornalista, o sujeito possa bater a carteira e não ir para a cadeia. Onde entra a ética? O que o jornalista não deve fazer que o cidadão comum não deva fazer? O cidadão não pode trair a palavra dada, não pode abusar da confiança do outro, não pode mentir. No jornalismo, o limite entre o profissional como cidadão e como trabalhador é o mesmo que existe em qualquer outra profissão. É preciso ter opinião para poder fazer opções e olhar o mundo da maneira que escolhemos. Se nos eximirmos disso, perdemos o senso crítico para julgar qualquer outra coisa. O jornalista não tem ética própria. Isso é um mito. A ética do jornalista é a ética do cidadão. O que é ruim para o cidadão é ruim para o jornalista."
A longa citação, sob muitos pontos de vista, não é incorreta, e por isso mesmo o escrito tem encontrado longevidade quando se trata de discutir ética jornalística. Mas, ao desconsiderar a ética como algo que é exigido de modo mais aguerrido a partir da reflexão perante dilemas cujas soluções não são tão bem estabelecidas pelo código moral – e ao desestimar as nuances desses dilemas na esfera profissional específica do jornalismo –, o trecho do clássico artigo pode induzir à ideia de que a prática jornalística não enfrenta situações as quais seriam inimagináveis para o cidadão comum. Não só isso, a problemática inerente à profissão se encontra distante também de outros campos, como a farmácia, a medicina ou a engenharia. Isso também se aplica à marcenaria.
É essa problemática que interfere na construção da deontologia, dos direitos e deveres que se inscrevem em ofícios particulares, e que não encontram uma universalização quando esmiuçados pelo cotidiano. O que isso significa? Que embora em seu trabalho o marceneiro não possa mentir, enganando o cliente, as consequências de sua fabulação sobre a madeira nunca serão iguais àquelas que recaem sobre quem foi vítima de um crime de imprensa. Um armário planejado não é uma pessoa. O jornalismo afeta centenas, milhares, afeta milhões. O móvel mal feito, na esfera do artesanal, nem tantos. Nem com tanta profundidade: armários se trocam, mas não se pode dizer o mesmo sobre histórias de vida. Se é assim, os cuidados diante dos dilemas, que não se referem apenas à publicação de mentiras, precisam ser intensificados. É aí que entra a responsabilidade social do jornalista, que deve reconhecer que ela é do tamanho de seu privilégio de construir uma parcela da realidade que cerca a esses inúmeros, e assumi-lo não como um fardo, mas com o “orgulhoso conhecimento do privilégio extraordinário da responsabilidade”, como disse Nietzsche em Genealogia da moral.
É provavelmente por essa percepção, com certeza não intuitiva mas advinda de sua enorme experiência, que os parágrafos de Abramo, seguintes à defesa de que marcenaria e jornalismo são iguais, passam a apresentar questões características relacionadas à ética da profissão, escrevendo sobre o que acredita ser um jornalismo correto, deixando a marcenaria para trás, sem retornar ao mote de que não existe uma ética própria jornalística.
É também essa percepção, que não diz exatamente que o jornalismo possui uma ética particular, mas que enfrenta problemas peculiares relacionados à ética, que nos acena do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, lembrando que temos deveres para cumprir além dos bem estabelecidos pela nossa educação moral básica. Ao marceneiro, o que é do marceneiro. Ao jornalista, o que é do jornalista.
Rafiza Varão é doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (2012), na área de Teoria e Tecnologias da Comunicação. É mestre em Comunicação também pela Universidade de Brasília (2002), na área de Imagem e Som. Graduou-se em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo (1999). Leciona na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília e trabalha especialmente com Teorias da Comunicação, Ética e Redação Jornalística. Coordena o projeto SOS Imprensa e é coordenadora editorial da FAC Livros.
Comentários
Postar um comentário