Nesta época do ano (final do primeiro trimestre), costumo fazer uma leitura transversal do que esteve nos palcos dos principais eventos de tecnologia e inovação dos primeiros meses. Uma das coisas mais bacanas da economia colaborativa é o compartilhamento de informações. Muitos amigos e colegas que participam desses eventos fazem e compartilham, generosamente, a curadoria dos conteúdos. Isso tem um valor inestimável, e sou grato por poder acessar esses conteúdos. Indo direto ao ponto, não foi surpresa para ninguém que os temas mais humanísticos tenham dividido o espaço com a tecnologia nos melhores encontros até agora. Já está claro para todos os que dedicam sua atenção ao assunto que não é a tecnologia que determina os rumos da sociedade (embora pareça que é assim). Ao contrário, são as demandas sociais que definem o sucesso das novas tecnologias, embora o atendimento dessas demandas possa transformar a sociedade e gerar novas demandas. E também já se percebeu, mesmo em grandes corporações, que quando o assunto é transformação digital o foco deve estar mais na transformação (de atitudes, principalmente) do que na tecnologia digital.
No evento de tecnologia e inovação mais popular entre os brasileiros, o SXSW de Austin, o ser humano (Homo Sapiens Sapiens 1.0.4) foi a constante de ligação (ou hub) para a maioria dos temas abordados. O megaevento alcançou sua maturidade e ‘despertou’ para o fato de que somos, os humanos, a medida para todas as coisas.
Não é, exatamente, um pensamento novo. Protágoras, filósofo grego, afirmou isso um pouco antes do início da era cristã: "O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são". Mas vez por outra nos esquecemos desse conceito, apaixonados que somos por novidades.
Confiança, ansiedade, solidão, propósito, diversidade, acessibilidade, percepções e outros temas sociais e ‘humanos’ capturaram mais a atenção do que a tecnologia que, no fundo, é sempre um pouco mais do mesmo.
Tendo a perspectiva humanista como norte, a tecnologia resgata seu papel de ‘meio’ para atender necessidades (e não um fim em si mesma), e a ética e a estética ganham, naturalmente, seu espaço na avaliação da relevância das jornadas de inovação.
A Lógica (tecnologia), a Ética e a Estética: o verdadeiro, o bom e o belo, compondo a tríade Platoniana do ‘Kalós’.
É então que surgem as polaridades dialéticas das inovações tecnológicas. Sensores para monitoramento de biodados podem trazer benefícios significativos para a saúde de seus usuários e para o desenvolvimento da medicina de um modo geral, e a tecnologia para produção de uma primeira geração de sensores adesivos em larga escala (e baixo custo) já está disponível. Mas temos que considerar ‘o lado negro da força’, ou seja, o uso indevido (a ética) dessas informações – e isso está sendo discutido para todas as tecnologias que acessam dados pessoais. A Inteligência Artificial Autônoma (AAI) alcançou um novo patamar e, acredite, as máquinas serão mais analíticas e tomarão cada vez mais decisões por você**. Mas precisamos conversar sobre quem será responsabilizado por essas decisões quando, por exemplo, seu veículo autônomo ‘decidir’ atropelar um pedestre para evitar uma colisão que poderia ser perigosa para seus ocupantes.
A Estética assume sua essência sensorial nos eventos de inovação, não só quando o assunto é Realidade Virtual (VR) suportada por novas tecnologias cada vez mais interativas e sinápticas. A interação com a realidade e sua percepção individual, os desejos e necessidades, o prazer e a felicidade, invadiram o mundo digital. É possível que, passadas as primeiras duas décadas deste novo século, já tenhamos nos dado conta de que os maiores ‘cases’ de sucesso do mundo digital sejam lastreados pelo atendimento das mesmas ‘velhas’ necessidades humanas e seus negócios tradicionais (comércio, transporte, comunicação, hotelaria, bancos, etc.). Podemos esperar novas startups menos preocupadas com os ‘pain points’ (dores) e mais focadas nos ‘pleasure points’ (prazeres), onde a escassez de soluções é abundante.
Platão (sempre ele) já havia dito que a necessidade é a mãe da invenção. E podemos lembrar da Agatha Christie, romancista, que preferia apontar a preguiça como o maior fator de motivação. Mas não nos enganemos. No mundo moderno, o que vale é o retorno sobre o investimento e, portanto, a inovação precisa servir ao consumidor. Isso significa que as discussões sobre o e-commerce, que andavam menos presentes nos eventos genéricos sobre a inovação, devem retornar com força.
Vale a pena dedicar um minuto à preguiça da Agatha. Se a interatividade foi um dos pilares do mundo digital neste início de século, a redução da necessidade de interagir deve animar os desenvolvimentos da próxima década.
Implicitamente, esse foi o tema do MWC (Mobile World Congress), que teve como foco os ‘assistentes pessoais’ (como os wearables ou carro autônomo – um smartphone sobre rodas, como costuma dizer Peter Kronstrøm, Head Latam do CIFS) e as máquinas que conversam entre si, dispensando a intervenção humana (o que já acontece no ambiente da Industria 4.0). Como, para algumas decisões, o tempo de latência (a demora) da resposta é relevante, a indústria aposta na chegada do 5G para o desenvolvimento dessas novas aplicações.
Vale dizer que, para que um dia cheguemos ao mundo de fantasias oferecido pelas novas tecnologias, a conectividade segue como um grande desafio, particularmente no Brasil onde, mesmo nos maiores centros urbanos, uma conexão estável de alta velocidade é um luxo à disposição de poucos.
Se me perguntarem qual será o tema, ainda pouco presente, que poderá ser o ‘wow’ (causador de furor) nos eventos de 2020, eu diria que é a Criatividade e seu conflito com as regras de ‘Compliance’.
Um movimento que começou a ganhar força no ano passado foi a interiorização da inovação pelas grandes corporações, que havia sido terceirizada para o ecossistema das startups mas que, agora, retorna no contexto mais amplo de Open Innovation. A ‘verdadeira’ inovação aberta é compartilhada e demanda liberdade de pensamento e de expressão ou, em outras palavras, uma atitude criativa. O choque com a cultura desenvolvida pelas organizações nas últimas décadas será inevitável.
Podemos esperar embates interessantíssimos nos palcos.
se tiver interesse em receber o guia dos melhores eventos de inovação de 2019, ou na apresentação do conteúdo de cada evento (decoding) com a curadoria da White Rabbit, mande um e-mail para vanessa@whiterabbit.house
sobre AI, vale a pena assistir o episódio “When the Yogurt took over” da série “Love, Death & Robots - Netflix
Flavio Ferrari, Head do CIFS BR – Copenhagen Institute for Futures Studies
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