"Uma barragem que chama a atenção pela firmeza e resiliência é a que protege os privilégios dos poderosos dos vários poderes. Até hoje não foi possível, por exemplo, sequer arranhar o privilégio dos juízes, esses cuja maior punição é...um prêmio". (Atenção: todas as informações abaixo são falsas e não merecem ser levadas a sério. Fosse você eu nem lia). É uma injustiça a acusação de que o Brasil é incompetente na construção de barragens. Pelo contrário. Não existe maior volume de know-how, formação técnica e, principalmente, garantia de solidez de barragens do que no Brasil. Nessa área, temos expertise pra dar, vender, emprestar e exportar.Exemplos? Pois lá vai. Uma das barragens mais fortes já erguidas em território brasileiro é a que garante os altos níveis de desmatamento. Nunca apresentou uma fissura séria. Os que exploram as riquezas da floresta sempre cuidam bem dessa barragem. E mantêm a prudente distância, na boa ou na bala, quem se interpõe em seu caminho, como ativistas ambientais, índios e quilombolas.
Na boa ou na bala
Por falar em bala, outra barragem que se mantém forte é a que protege a indústria dos armamentos, recentemente reforçada por uma verdadeira barreira de contenção levantada pelo presidente Bolsonaro ao sancionar o decreto que flexibilizou a posse de armas no Brasil. Se no passado houve algum risco a essa barragem, como, por exemplo, a aprovação do Estatuto do Desarmamento, esse risco já foi desarmado, com perdão do trocadilho. A barragem é boa.
Outra barragem que chama a atenção pela firmeza e resiliência é a que protege os privilégios dos poderosos dos vários poderes. Até hoje não foi possível, por exemplo, sequer arranhar o privilégio dos juízes, esses cuja maior punição é...um prêmio: -“Você é um juiz corrupto. Logo, não tem o direito de continuar em nossa categoria. Vai ter de sofrer as agruras de ir pra casa ficar de papo pro ar recebendo seu salário integral, sem descontos! E dê-se por muito feliz, porque poderia ser pior!”
No Executivo, a farra dos cartões corporativos e as passagens para viagens “de serviço” ou “de estudos” (muitas vezes de araque) formam uma barragem de comprovada eficiência. Nunca vazou. Anos atrás o prefeito Marcelo Crivella, do Rio de Janeiro, fez uma viagenzinha à Europa acompanhado por uns compadres. Só de passagens o gasto chegou a 170 mil bagarotes. Alegou que foram “conhecer a Agência Espacial Europeia e empresas que fornecem tecnologia de segurança”. Tal conhecimento não resultou em nenhum benefício à segurança. Tanto que algum tempo depois veio a intervenção no Rio de Janeiro. O Ministério Público investigou as irregularidades da viagem. Mas até hoje ninguém foi punido. A barragem provou que é resistente. Passou no teste.
Não precisa se mudar pra ganhar auxílio-mudança
No Legislativo, um paredão protege o esdrúxulo auxílio-mudança pra parlamentar reeleito. Um juiz se atreveu a derrubá-la mas qual! Houve recurso e a bolada de 33,7 mil realetas para cada privilegiado foi integralmente paga, inclusive aos reeleitos do DF. “Auxílio pra se mudar pra onde, se já moram aqui?”, alguém indagou. “Não interessa! Tem direito e acabou-se”. Alguns se recusaram a receber. Mas a barragem continua firme.
E no setor de mineração? Ah, somos bons nisso. As barreiras que garantem a frouxidão das regras de licenciamento para barragens de rejeitos funcionam muito bem e não rompem de jeito e maneira. Em julho do ano passado na Assembleia de Minas Gerais foi “barrado” (perdão por mais um trocadilho) na Comissão de Minas e Energia um projeto que endurecia aquelas regras. Barragem sólida, garantida pelos interesses das maiores mineradoras. Vai ser difícil derrubá-la.
Não vai ser uma leizinha aí que vai ameaçar a barragem
São várias as barragens de provada eficiência. Mesmo quando ligeiramente ameaçadas logo recebem reforços. A que impede o livre acesso à informação vinha sofrendo erosão desde que a Lei de Acesso entrou em vigor em 2012. Pelas fissuras na parece principal vazaram dados que abalaram os alicerces da república. Daquele tempo pra cá mais de 17 mil pedidos de informação tiveram de ser cumpridos! Foi possível saber segredos da ditadura de 64 e o apoio do Brasil à ditadura de Pinochet. E descobrir quais os assessores parlamentares que recebiam salários da Câmara dos Deputados sem dar um prego numa barra de sabão. Entre outras malandragens. Um verdadeiro vexame, exigindo que alguma coisa fosse feita. E foi. O presidente Bolsonaro assinou decreto permitindo que um número maior de agentes públicos analise conteúdos e os classifiquem como ultrassecretos. Ou seja, não vai ser uma leizinha qualquer de acesso à informação que vai ameaçar a resistência da barragem. Os reparos já começaram a ser feitos. E a concretagem é competente.
O paredão da intolerância
Já a barragem da intolerância e do preconceito é um paredão de aço. Resiste a tudo. Até hoje não cedeu aos impactos dos que lutam por uma legislação que criminalize a homofobia, mesmo que as estatísticas demonstrem que um homossexual é morto a cada 25 horas no Brasil. Barragem feita com material nobre: o cimento da ignorância e do desprezo aos direitos humanos. Vem sendo reforçada cuidadosamente por damares e bolsonaros. Não corre qualquer risco.
Em suma: as barragens mencionadas se garantem. Nem trincam! Bem diferentes dessas que vêm causando tantos desastres e custando tantas vidas.
Paulo José Cunha é professor, jornalista e escritor.
Comentários
Postar um comentário