Ao mesmo tempo em que quebrou estereótipos e consagrou uma seleção francesa de matriz africana, o Mundial escancarou o assédio contra mulheres e a bipolaridade russa. Mbappé, craque mais promissor da geração bicampeã na Rússia, nem era nascido quando a França de Thuram, Desailly, Zidane e companhia ganhou sua primeira Copa do Mundo em casa e se tornou o símbolo de um país que dizia se orgulhar da multiplicidade de etnias. Agora, duas décadas depois daquela conquista, um time formado por 14 jogadores de ascendência africana alcança nova e não menos simbólica façanha, diante de um cenário que fecha portas para imigrantes e revigora correntes xenofóbicas não só em território francês, mas em toda a Europa.
Além do bicampeonato marcado pela diversidade dos blues, o Mundial 2018 serviu para quebrar estereótipos dentro e fora do gramado. Contradizendo o rótulo que limita seleções africanas a equipes de vigor físico e pouca disciplina tática, o Senegal de Aliou Cissé, único técnico negro da Copa, mostrou organização sem abrir mão do jogo ofensivo. Só não se classificou graças ao critério de desempate, que, pela primeira vez na história, eliminou uma seleção pela quantidade de cartões amarelos. Para ficar com a vaga, o Japão, visto sob a ótica da torcida que recolhe o próprio lixo da arquibancada, apelou à malícia ao assegurar a derrota mínima diante da Polônia. Também era comum dizer que, quanto mais bagunçado e tumultuado o ambiente de sua seleção, mais chances a Argentina tinha de fazer uma grande Copa. Dessa vez, rachada entre jogadores e o técnico Jorge Sampaoli, a albiceleste escapou de um vexame na primeira fase, mas não foi capaz de segurar o ímpeto da França nas oitavas.
Na primeira Copa com árbitro de vídeo (VAR), a tecnologia deu sinais que ainda não está completamente assimilada pelos árbitros humanos, jogadores e comissões técnicas. Apesar de ter sido acionado 24 vezes no Mundial, incluindo o lance do pênalti assinalado contra a Croácia na final – a maioria delas com acerto após a revisão, como na simulação de Neymar diante da Costa Rica –, o recurso eletrônico expôs falhas de protocolo e critérios ambíguos em algumas marcações. Tanto que passou a ser utilizado com mais parcimônia na fase de mata-mata. Esta foi a Copa com mais gols contra em uma mesma edição (12) e quase metade (72) dos 169 tentos marcados saíram de bola parada, como o primeiro da França sobre os croatas, em que Mandzukic cabeceou para o próprio gol após cobrança de falta de Griezmann.
O Brasil também sofreu com o duplo golpe ao ver a Bélgica abrir o placar em cobrança de escanteio que foi parar nas redes de Alisson depois de desviar em Fernandinho. Na Copa em que o pragmatismo e a força física se sobrepuseram ao futebol vistoso, a eliminação deixou lições amargas para Tite, que até então era exaltado pela solidez defensiva da seleção, e Neymar, chamuscado pelas encenações e o destempero, sobretudo no jogo contra os costarriquenhos.
Porém, nem tudo foi lamentação para os brasileiros. Ronaldinho Gaúcho esbanjou sua simpatia na festa de encerramento do Mundial, e os fotógrafos, especialmente, deram um show à parte. Assim como o salvadorenho Yuri Cortez, que exibiu profissionalismo mesmo derrubado por meio time croata na semifinal, o mineiro Eugênio Sávio foi o responsável por uma das fotos mais poéticas da história das Copas, ao registrar com perfeição o movimento de balé de Paulinho que antecedeu o gol contra a Sérvia. Já Rodrigo Villalba eternizou o contraste entre os times de Polônia e Senegal, que, tal qual a mistura de cores e traços da seleção francesa, revela o verdadeiro espírito de união dos povos nutrido pelo futebol.
Com saudade antecipada, muitos torcedores encabeçaram campanha para que haja Copa de dois em dois anos. Mas, para infelicidade dos fãs de futebol, o próximo Mundial só terá bola rolando daqui a quatro anos e meio, já que a edição de 2022 vai ser realizada entre novembro e dezembro, a fim de evitar as elevadíssimas temperaturas no verão do Catar. Em compensação, tem Copa do Mundo feminina, sediada na França, e Copa América masculina, que será realizada no Brasil, ambas em junho do ano que vem.
Nem tudo são flores na “Copa das Copas”
Como manda o protocolo, o presidente da FIFA, Gianni Infantino, qualificou o Mundial da Rússia como “a melhor Copa do Mundo da história”, em entrevista na última sexta-feira. É praxe dos cartolas exaltar os países que organizam megaeventos, mas ter realizado a Copa sem registros notáveis de distúrbios, incólume às ameaças de atentados terroristas e à violência dos hooligans, faz de Vladimir Putin um dos grandes vitoriosos do torneio nos bastidores. Não só pela surpreendente campanha da Rússia, que desbancou a Espanha e chegou às quartas de final, como também pelo capital político angariado pelo presidente russo no esforço de vender aos mais de 1 milhão de turistas estrangeiros e aos 3 bilhões de espectadores da Copa a imagem de um país próspero e mais tolerante à diversidade.
No entanto, embora o presidente tenha declarado que os visitantes “viram tudo com os próprios olhos e que os mitos e preconceitos desmoronaram”, a Rússia e a Copa do Mundo comprovaram que ainda precisam avançar em questões relacionadas aos direitos humanos. Na final, um grupo invadiu o gramado para protestar contra a falta de liberdade de expressão e manifestação - a manifestação foi reivindicada pelo Pussy Riot, opositor do mandatário russo. Durante o torneio, equipes de segurança se esforçaram em reprimir qualquer tipo de protesto nas cidades-sede do evento. Antes do Mundial, organizações independentes também haviam denunciado a matança de animais de rua e a exploração de trabalhadores nas obras dos estádios, contando com a omissão da FIFA. Denúncias semelhantes já recaem sobre o Comitê da Copa no Catar, onde milhares de operários, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), estão submetidos à condições análogas à escravidão.
Em uma Rússia hostil a manifestações políticas e homoafetivas em público, torcedores de várias nacionalidades atestaram o caráter universal do machismo. O vídeo de um grupo de brasileiros, por exemplo, rodou o mundo com expressões de baixo calão direcionadas a uma mulher russa. Pelo menos 12 jornalistas, como as repórteres Júlia Guimarães, da Globo, e Laura Zago, da CBF, foram assediadas por homens ao longo da cobertura da Copa, em que as mulheres representavam apenas 15% dos profissionais credenciados.
Por outro lado, o canal Fox Sports deu abertura à voz feminina ao destacar três narradoras para o Mundial. Uma delas, Isabelly Morais, se tornou a primeira a narrar um jogo de Copa na televisão brasileira. A resposta firme aos casos de assédio por parte das jornalistas aponta que há comportamentos que já não são mais tolerados. Regra que se aplica às piadas racistas e preconceituosas, como a divulgada nas redes sociais pelo youtuber Julio Cocielo, sugerindo que, por sua velocidade, Mbappé poderia se dedicar a fazer arrastões na praia. Ele perdeu patrocinadores e, depois que usuários encontraram outras postagens mais antigas com teor igualmente racista, pediu desculpas pela brincadeira de mau gosto.
A CBF também aprontou das suas na Rússia. Depois do polêmico gol da Suíça na estreia, a confederação remeteu uma carta à FIFA reclamando dos critérios da arbitragem. No ofício, a assinatura institucional apresentava um erro de grafia: “Confederação Brasileira de Fitebol” (sic). Presidente tampão da entidade, o Coronel Nunes quebrou o acordo com a Conmebol e votou no Marrocos como sede da Copa em 2026. Não bastasse o incidente diplomático causado pela gafe, um dos assessores do cartola se envolveu em confusão num restaurante de São Petersburgo e quebrou um copo na cabeça de um torcedor que havia debochado de Nunes. Seu mandato vai até abril do ano que vem, dois meses antes de o Brasil sediar a próxima Copa América, mas dirigentes já movem peças internamente para encurtar o reinado do Coronel e, assim, tentar evitar novos constrangimentos.
A reportagem é de Breiller Pires, publicada por El País e Caminho Político.
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