Campeãs da Sapucaí, Beija-Flor e Tuiuti fizeram ecoar na passarela do samba o grito contra corruptos"


Para além da vitória da Beija-Flor de Nilópolis, declarada campeã do carnaval carioca nesta quarta-feira (14) de cinzas, o que ficará para a história nesta jornada de folia são os protestos, dentro e fora da passarela do samba, contra corruptos de todos os matizes ideológicos. Coincidência ou não, o segundo lugar na já tradicional apuração de notas, transmitida a cada ano pela TV Globo, foi a Paraíso do Tuiuti, estreante do grupo principal que ousou criticar o governo Michel Temer e a corrupção em geral e se consagrou não só com a votação na Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), mas caiu nas graças de internautas salgueirenses (3º lugar), portelenses (4º lugar), mangueirenses (5º lugar)… Em 2018, tanto a Beija-Flor quanto a Tuiuti, bem como a Mangueira e outras agremiações, emocionaram ao se transmutar em porta-vozes da indignação do povo na Marquês de Sapucaí. Com um enredo que caprichou na crítica ao poder e à corrupção no Brasil (“Monstro é aquele que não sabe amar – Os filhos abandonados da pátria que os pariu”), a Beijar-Flor levou ao grande público um Congresso com ratos (leia mais e veja o desfile completo aqui). Fez menção aos nossos monstros nacionais (além da corrupção, a violência, o racismo, a intolerância…) a partir da metáfora com Frankenstein, personagem da escritora londrina Mary Shelley criado em 1818. E, para traduzir a revolta popular com os poderosos, retratou a cena em que o ex-governador Sérgio Cabral, preso em desdobramento da Operação Lava Jato, celebra a gastança com dinheiro público em uma patética performance com guardanapos na cabeça, acompanhado pela esposa Adriana Ancelmo, também condenada, e alguns de seus aliados na corrupção em um restaurante de luxo em Paris. No encerramento do segundo dia de desfiles, já na madrugada de terça-feira (13), a Beija-Flor caprichou na escolha da simbologia ao reproduzir em uma alegoria o famoso jantar, em um restaurante luxuoso na capital francesa, em que Cabral, auxiliares e empresários que tinham negócios com o estado confraternizam com guardanapos na cabeça, esbanjando o dinheiro desviado do povo. Ocorrido em setembro de 2009, o episódio ficou conhecido como a “farra dos guardanapos”.A agremiação liderada pelo intérprete Neguinho da Beija-Flor decidiu arriscar e, se não primou pelo rigor técnico, segundo especialistas, privilegiou o impacto. Para tanto, mostrou os efeitos da corrupção para a principal vítima, as classes menos assistidas, de uma forma aguda: crianças em caixões, policiais mortos (foto abaixo) e até a encenação de um aluno disparando tiros com arma de fogo contra colegas. No lugar das fantasias luxosas e alegorias suntuosas, farrapos e trapos a conotar a miséria do povo enganado. Nas alas, diversas referências a políticos corruptos com suas malas de dinheiro e cédulas mal escondidas em ternos.
Estreia e glória
Mas não foi a Beija-Flor, terceira escola mais vitoriosa do Rio (atrás de Mangueira e Portela, a primeira colocada), o centro das atenções na passarela do samba. Fundada em 1954, a agremiação entrou na avenida “com o pé na porta”, como se diz no popular, ao retratar Temer como um “vampiro neoliberalista” – no alto de um carro, destacou um homem de terno e cabelos grisalhos portando a faixa presidencial (foto abaixo). A escola adentrou a avenida no domingo (11) e levou ao grande público um forte discurso contra mazelas políticas e sociais. Com o samba “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”, a agremiação soltou o grito contra o racismo renitente na sociedade brasileira, com suas variadas formas de “escravidão” social – entre elas, as relações trabalhistas recentemente modificadas pelo governo Temer, com o auxílio providencial do Congresso.Em um um carro onde viam “paneleiros” com camisas da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a crítica foi mais longe: a ala intitulada “Manifestoches” exibiu passistas fantasiados de patos amarelos, numa analogia aos protestos de rua que ganharam corpo em 2016 e, simbolizados com o pato amarelo gigante concebido pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), contribuíram para o impeachment de Dilma Rousseff. Alguns dos “fantoches manipulados” foram ligados a mãos gigantes instaladas em um carro alegórico (foto abaixo), na clara ideia de que eleitores, segundo a Tuiuti, foram manipulados por grupos poderosos, ativistas de internet e alguns veículos de imprensa.A conjunção dos elementos constrangeu apresentadores da TV Globo, associada ao que defensores da petista chamam de “golpe parlamentar” para tirá-la do poder. Longos períodos de silêncio e diálogos desconcertados se seguiram ao final do desfile, principalmente quando surgiu em telas e telões a figura de Temer como vampiro de direitos sociais. Nenhum dos apresentadores da TV Globo mencionou o nome de Temer diante da aparição da fantasia trajada pelo chefe do atelier da Tuiuti, Leo Morais. Do camarote onde são narrados os desfiles e, ao final de cada um deles, realizadas entrevistas com personalidades, sambistas e carnavalescos, a jornalista Fátima Bernardes se limitou a dizer que a ala representava “o regime de exploração nos mais diversos níveis”. Antes, o apresentador Alex Escobar e o carnavalesco Milton Cunha manifestaram parcimônia ao comentar a crítica gritante ao presidente. “O vampirão…”, sintetizou Milton, levando Escobar a uma risada contida. Em seguida, o protagonista do quadro de esportes “Cafezinho com Escobar” limitou-se a descrever o óbvio: “Tá com a faixa de presidente esse vampiro aí”… Seguindo o roteiro, o camarote da Globo recebeu para a descontraída entrevista alguns integrantes da Tuiuti. No entanto, o Temer como vampiro neoliberal, os “manifestoches” ou os paneleiros não foram mencionados.Na referência mais clara ao neoliberalismo posto em campo pelo governo Temer, outra ala retratou o trabalho informal, em referência à reforma trabalhista que alterou, no ano passado, diversos pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – e, segundo críticos das mudanças, precarizaram as condições do trabalhador e desequilibraram, em favor dos patrões, a relação entre empregadores e empregados. Como este site mostrou à época da aprovação final da matéria, no Senado, 74% dos senadores que votaram a favor das alterações na legislação são empresários.
Estação Primeira
O carnaval deste ano se transformou em uma manifestação generalizada de resistência de sambistas e demais foliões contra a postura do prefeito evangélico Marcelo Crivella (PRB), um dos líderes da Igreja Universal do Reino de Deus. Devido à sua orientação religiosa, Crivella tem manifestado desprezo pela festa popular desde sua posse, no início de 2017. De lá para cá, cortou verbas de patrocínio da prefeitura, uma tradição no carnaval carioca, para as escolas de samba, bem como recusou participar de rituais como a entrega da chave da cidade do Rio de Janeiro para o Rei Momo. Aproveitou e levou membros de sua equipe para um tour pela Europa durante os festejos de Momo. A insatisfação do povo foi imediata e se reproduz não só no ambiente organizado da Sapucaí, mas principalmente no campo livre das ruas, com os mais 600 blocos de bairro representando a verdadeira festa da democracia. Além da Tuiuti, com artilharia apontada ao presidente, a Estação Primeira de Mangueira levou a um dos carros alegóricos a figura de Crivella como um judas (foto abaixo), no enredo “Com dinheiro ou sem dinheiro, eu brinco”. Era o ponto culminante de uma reação que começou com promessas não cumpridas feitas pelo prefeito à comunidade do samba quando ele estava em campanha – e que, como se viu depois do pleito, não só se cumpriram como se reverteram em retirada de recursos das agremiações.Em uma faixa fixada no mesmo palco em que o prefeito foi criticado, no penúltimo carro do desfile. leu-se a frase: “Prefeito, pecado é não brincar o carnaval”! Encerrado o desfile, o presidente da escola de samba, Chiquinho da Mangueira, resumiu o mote concebido pelo carnavalesco Leandro Vieira e levado à avenida pela comunidade: “Foi a resposta para ele repensar o que fez com o carnaval. Cometeu a maior injustiça com a maior festa popular do mundo, que é o carnaval. A Mangueira se propôs a se rebelar contra isso tudo”.
FÁBIO GÓIS
Cristina Indio do Brasil/Agência Brasil

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