Casar e ter filhos deixou de ser prioridade. Mulheres querem viajar e ter liberdade, mostra pesquisa com mais de mil entrevistadas no Brasil. Ela também revela como os sonhos se transformaram de uma geração para outra. Conhecida entre personalidades do mundo da moda, a influenciadora Izaura Demari, de 83 anos, tem um sonho que ainda não realizou: viajar para a Itália. Nascida e criada num sítio no Paraná, ela sempre quis conhecer a terra onde seu pai nasceu, mas teve que adiar os planos depois de casar-se aos 18 anos e ter três filhos. "Depois da morte do meu marido, comecei a viajar mais com meu filho caçula. Peguei gosto e não quero parar", conta Demari, conhecida nas redes sociais pelos chapéus elegantes.
Descobrir o mundo é o sonho de muitas meninas e mulheres brasileiras. Uma pesquisa envolvendo mais de mil entrevistadas pelo país mostra que viajar é o sonho de infância comum entre as diferentes gerações. Casar e ter filhos deixou de ser prioridade para as mais jovens, mostra o estudo feito pela organização Think Olga.
"A viagem representa um universo inteiro de coisas. Quando essa mulher se desloca do seu contexto para outro diferente, deixa para trás problemas do cotidiano, coisas que achatam os sonhos, experimenta novas versões de si mesmo, conhece o novo", explica Maíra Liguori, presidente da ONG.
A investigação visava os sonhos de infância e o que eles se tornaram na vida adulta. As entrevistadas tinham entre 18 e 60 anos, o que permite comparar a evolução dos sonhos e anseios femininos entre diversas gerações.
E o casamento?
O desejo de viver uma relação amorosa, um casamento e ter filhos aparecem como sonho de infância entre as entrevistadas mais idosas. Entre aquelas de 18 a 30 anos, essas palavras nem são citadas muito como projeto de vida. Para esse grupo é mais importante ter uma carreira e independência e ter um filho – mais do que constituir uma família.
Débora Diniz, antropóloga e professora licenciada da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Unb, considera impressionantes os resultados da pesquisa. Ela acredita que, ao falar de desbravar o mundo, as mulheres mostram que querem ir além dos muros da casa.
"Isso não significa abandonar a maternidade, abandonar o casamento, mas é que eles não são um único sonho, como foi o caso da geração que me antecedeu, da minha mãe. Para elas, casar era mais do que um sonho, era um destino", diz a antropóloga. "Às mulheres do século 21 está sendo permitido não confundir o sonho com o destino do gênero."
Desigualdades que persistem
Viajar o mundo, explorar e viver experiências culturais mostra a vontade de acumular conhecimento e sede de liberdade, apontam os resultados da pesquisa. E 88% das entrevistadas reconhecem que alcançar esse objetivo hoje só é possível, graças aos avanços conquistados por anos de lutas.
"Estamos falando de mulheres que viram suas bisavós voltarem, suas avós já não tendo a mesma quantidade de filhos, suas mães trabalhando e sonhando com outras coisas… Então elas podem se ver dentro de um horizonte de possibilidades", analisa Diniz, que não participou do estudo.
Maíra Linguori, do Think Olga, lembra que ainda há um longo caminho a ser percorrido rumo a essa desejada liberdade. Apesar dos avanços das políticas públicas, o Brasil é um dos líderes globais de feminicídio, o assassinato por questão de gênero, muitas vezes provocado pela ideia de que a mulher é uma posse do companheiro.
"Tem ainda outras barreiras. As mulheres gastam mais do que o dobro do tempo dos homens com os trabalhos de cuidado da casa e filhos, que virou um 'pedágio' que a mulher tem que pagar para prosperar e ter autonomia. Falta apoio de políticas públicas para mudar isso", comenta Linguori.
Os salários também divergem: em média, as brasileiras ganham 19,4% menos que os homens. Em cargos de gerência, essa diferença chega a 25,2%. As mulheres negras, além de estar em menor número no mercado de trabalho, têm renda mais desigual, quase 30% a menos que a média dos homens, revela um levantamento de 2024 feito pelos ministérios do Trabalho e Emprego e das Mulheres.
"Além dessas desigualdades, elas estão suscetíveis ao assédio e sofrem intolerância em relação à maternidade, pois muitas empresas barram as mães de subirem na carreira", acrescenta a ativista do Think Olga.
Sonhe como uma garota
A pesquisa feita pelo Think Olga é parte de um projeto idealizado por Camila Alves, produtora cultural que queria inspirar jovens, revelando o perfil de mulheres atuantes, de profissões diversas.
"Nós percebemos que muitas tinham dificuldade em acessar os sonhos de infância, principalmente as mais velhas. As pessoas ficaram muito endurecidas", diz Alves ao detalhar as fases do projeto, que incluiu oficinas e trabalhos manuais. A iniciativa visa sensibilizar e incentivar mulheres a se olharem, a pensarem em suas trajetórias como lugar de transformação, para que sonhem mais do que suas mães.
Tornar-se uma influenciadora digital aos 76 anos nunca passou pela mente de menina de Izaura Demari, mas os chapéus nunca saíram de sua cabeça. Desde criança, ela gostava do acessório, uma forma de proteção contra o sol que as irmãs usavam no trabalho braçal no sítio.
"Eu também sempre gostei de ir aos bailes. Mas quando eu me casei, tive que parar. Um outro sonho que tenho desde garota é aprender a dançar tango. Espero um dia realizar", conta Demari, que já foi capa de revista e fez propaganda de uma marca de cosméticos alemã.
"Nunca pare de sonhar"
A vontade de se tornar jogadora profissional de vôlei acompanhou Jamile Cruz na infância, mas desapareceu quando a adolescência chegou e a "realidade bateu à porta". Ela acabou estudando engenharia e atualmente trabalha como alta executiva de uma multinacional. Para realizar seus novos sonhos, que incluíam conquistas profissionais e construção de um legado que pudesse impactar mais pessoas, ela se mudou para o Canadá há 19 anos.
"A experiência profissional fora do país e o aprendizado de novas línguas indicava o aumento da possibilidade de um futuro melhor e de eu poder proporcionar oportunidades para mais meninas como eu."
Na vida entre Canadá e Brasil, Cruz também fundou uma empresa com políticas voltadas para inclusão e melhoria das condições de trabalho para mulheres. E às meninas de hoje, ela aconselha que não nunca parem de sonhar: "É importante estar aberta a novas perspectivas e sempre buscar conhecimento, interno e externo, isso ajuda muito na definição de caminhos prósperos. É importante ter curiosidade e coragem", assegura, com base em sua própria experiência.
Nádia Pontes/Caminho Político
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