Começo agradecendo a Fundação Brizola-Pasqualini, sobre minha participação nestes 60 anos do Golpe de Estado de 1964, com esta frase do presidente João Goulart, quando, durante seu governo, propunha a Reforma Agrária, como a mais importante das “Reformas de Base” de seu governo. Talvez possamos dizer que era aquela que os grandes interesses dos monopólios internacionais e dos grandes empresários nacionais obstaculizaram durante anos e anos, em detrimento do desenvolvimento nacional. Até hoje, não foi implantada.A proposta de Jango sobre a Reforma Agrária, segundo o líder do Movimento sem Terra (MST), João Pedro Stédile, foi a melhor proposta feita até hoje no Brasil, na questão de acesso à terra.
Reforma agrária é, sem dúvida, um tema polêmico. Antes de buscarmos analisar as várias tentativas e propostas que foram apresentadas, verificaremos que elas apenas se pseudomaterializaram, em um engodo de apenas uma titulação fundiária, sem observarmos a nossa Constituição.Reforma Agrária, em nosso país e no mundo, é uma necessidade não só de sobrevivência, mas também na integração de pequenos agricultores inseridos na produção e na cadeia de alimentação, participando na subsistência de nossa população, contribuindo com o PIB nacional.
Hoje, a Reforma Agrária é uma questão que deve ser tratada com serenidade que a gravidade do problema exige. A Reforma Agrária exige que não mais se coloquem grandes contingentes humanos em grandes e longínquas áreas desapropriadas, inapropriadas, longe dos centros de consumo, sem assistência técnica, sem escoamento e sem um programa de produção assistida.
Pois se assim for, transformaremos esse contingente humano em apenas agricultores de subsistência. Isto seria somente uma distribuição fundiária, e não uma reforma. Precisamos instruir e fortalecer novos agricultores familiares, e não apenas dando títulos de ocupação da terra e fazendo destes trabalhadores assentados eternamente dependentes da tutela do Estado, sem acesso ao mercado de consumo das grandes metrópoles brasileiras.
É claro que não deveríamos começar a Reforma Agrária em fronteiras agrícolas já instaladas, mecanizadas e com alto grau de mecanização, onde existe hoje uma agricultura voltada à exportação e altamente participativa de nossa balança comercial.
Mas também não podemos ser tolos ao ponto de pensar que um módulo rural no meio de uma área infértil, sem pluviosidade, de 40 Há ou mais, possa ser comparada a 1 Há irrigada, por aspersão, inundação ou gotejamento, no eixo Rio-SP, com planejamento de hortifrutigranjeiros, com grande mercado consumidor, ao lado do módulo produtivo.
Vivemos hoje o antagonismo entre a Reforma Agrária real (ela tem de ser revolucionária) e o discurso político da distribuição fundiária (travestida de reforma).
Continuamos, assim, sonhando com a real Reforma Agrária, proposta por Jango em 1964, e que pela sua potencialidade modificaria as estruturas do Estado brasileiro, não só da economia, mas para uma acelerada inserção social, nos meios de produção nacional.
Entremos, então, na Reforma Agrária proposta por Jango, para o Brasil de latifúndios à época, e a do Brasil com desmatamento contínuo de hoje, do agronegócio.
É importante que, ao analisar a reforma do campo, que o governo Goulart queria, saibamos o quanto hoje será muito mais difícil implantarmos essa mesma reforma revolucionária, que era e é necessária até os dias de hoje.
Nos anos 1964, portanto, há 60 anos do golpe de Estado, o Brasil possuía uma população de oitenta milhões de habitantes, e desta população, 75% viviam no campo. Hoje, temos uma população de 210 milhões de habitantes e quase 80% moram nos grandes centros urbanos.
O presidente João Goulart defendia que as terras a serem desapropriadas fossem as valorizadas pelo dinheiro público, do povo brasileiro, pelo investimento público, advindos dos impostos federais pagos pela população. Ou seja, em áreas prioritárias à implantação da Reforma Agrária, nas margens das rodovias federais, das barragens públicas feitas pelo governo e ferrovias feitas com recursos da nação.
Dez quilômetros seriam desapropriados nas margens destas obras, valorizadas pelo investimento público.
Dizia Jango: “Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude, de uma obra de saneamento, vá servir o interesse de especuladores de terras, que se apoderam de uma margem de uma estrada”.Pressionado pela crise institucional que se avolumava, pondo em risco a estabilidade do governo, Jango vai à praça pública explicar ao povo que decidira dar início às suas “Reformas de Base” para modificar os esteios econômicos da nação brasileira, antecipando-se ao Congresso Nacional, onde crescia forte resistência da elite reacionária e direitista.
Na noite do dia 13 de março de 1964, no comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, prevendo que sua histórica mensagem ao Congresso Nacional teria resistência, ainda não analisada, o presidente da República, em praça pública, anuncia o decreto da SUPRA, colocando como utilidade pública as propriedades rurais beneficiadas por investimentos públicos através de obras do governo federal.
O Decreto da SUPRA
O presidente da República, usando das atribuições que lhe confere o artigo 187 da Constituição, e tendo em vista o disposto na Lei 3365, de 21 de junho de 1941
Decreta:
Ficam declaradas de interesse público para efeito de desapropriação, nos termos e fins previstos no artigo 147 da constituição, as áreas rurais compreendidas em um raio de dez quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as terras beneficiadas ou recuperadas por investimentos da União em terras de irrigação, drenagem e açudagem.
Ficam excluídas deste decreto as propriedades que não tenham área superior a quinhentos hectares, quando situadas ao longo dos eixos rodoviários e ferroviários; e trinta hectares quando localizadas em terras beneficiadas ou recuperadas por obras públicas (...) ficam também excluídas as propriedades que vinham sendo social e adequadamente aproveitadas com índices de produção não inferior à média da respectiva região (...)
As desapropriações que trata o presente decreto, serão custeados com recursos orçamentários da própria SUPRA e das entidades convenientes. A SUPRA utilizarse-á preferencialmente, dos serviços do Ministério da Guerra, marinha e Aeronáutica com vistas aos estudos necessários a efetivação das desapropriações autorizadas por este decreto, nos termos dos convênios celebrados com os Ministérios citados em 24 de janeiro de 1964.
Foi então que os principais jornais do país começaram a antecipar a preocupação de uma influente minoria proprietária diante do decreto que vinha antecipar a Reforma Agrária.
Na sua edição de 29 de fevereiro de 1964, o Jornal do Brasil noticiava que o “Comício do dia 13 de março, quando será assinado o decreto da SUPRA, está sendo encarado nos meios oposicionistas e até mesmo nos governistas com apreensão. Não falta dentro do governo – lia-se no jornal - quem preveja que a manifestação popular na Guanabara adotara com a presença do Presidente da República e o anúncio de que o Poder Executivo adotará as providências adequadas a provocar a revolução do sistema agrário do país, possam ser tomados como uma espécie de senha, para invasões em larga escala e o consequente surto de choques e agitações em vários pontos do país”.
No Rio Grande do Sul, os ruralistas se mobilizavam através da Farsul e se rebelavam contra o decreto. Os jornais de Porto Alegre, através da nota da Farsul, recomendavam aos ruralistas que “em fase das crescentes ameaças de invasões de terras particulares, comandadas por comunistas, dentro de um plano de agitação nacional, julgava necessário advertir aos ruralistas a defenderem a qualquer preço suas propriedades contra essas invasões, que atentam contra o princípio da propriedade legitimados pela Constituição”.
No comício, o presidente Jango lançou o decreto sobre a justificativa: “A ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito de propriedade”. Mais uma vez, Jango antecipava vinte e cinco anos este preceito que viria a ser adotado pela última Constituição de 1988. Na sua última e derradeira mensagem ao Congresso Nacional, o presidente João Goulart assumia perante a nação “a responsabilidade de comandar a luta pela renovação pacífica da sociedade brasileira”.
E naquela mensagem dizia:
(...)no quadro das reformas básicas que o Brasil nos impõe, a de maior alcance social econômico, porque corrige um descompasso histórico, a mais justa e humana, porque irá beneficiar direta e indiretamente milhões de brasileiros, é, sem dúvida a Reforma Agrária. “O Brasil de nossos dias não mais admite que se prolongue o doloroso processo de espoliação que, durante mais de quatro séculos, reduziu e condenou milhões de brasileiros a condições subhumanas de existência”. Parece mentira, mas hoje após cinco séculos permanecemos nas mesmas condições e ainda não conseguimos distribuir renda em nosso país.
Em sua última mensagem ao Congresso Nacional, o presidente Jango submetia ao legislativo o pedido da apreciação da medida dizendo:
Assim é que submeto a vossas excelências, a quem cabe privativamente a reformulação da Constituição da República, a sugestão dos seguintes princípios básicos, para a consecução da Reforma Agrária.
A ninguém é lícito manter a terra improdutiva por força do direito da propriedade.
Poderão ser desapropriadas mediante pagamento em títulos públicos de valor reajustável, na forma que a lei determinar:
A) Todas as propriedades não exploradas.
B) As parcelas não exploradas de propriedades parcialmente aproveitadas, quando excederem metade da área total;
C) Nos casos de desapropriação por interesse social, será sempre ressalvado aos proprietários o direito de escolher e demarcar, como de sua propriedade de uso lícito, área contígua com dimensão igual a explorada;
D) O Poder executivo mediante programas de colonização promoverá a desapropriação de áreas agrícolas nas condições das alíneas “A” e “B” por meio de depósito em dinheiro de cinquenta por cento da média dos valores tomados por base para o lançamento do imposto territorial dos últimos cinco anos, sem prejuízo de ulterior indenização em títulos, mediante processo judicial;
E) A produção de gêneros alimentícios para o mercado interno tem prioridade sobre qualquer outro emprego da terra, e é obrigatório em todas as propriedades agrícolas ou pastoris diretamente pelo proprietário ou mediante arrendamento.
F) O poder Executivo fixará a proporção mínima da área de cultivo agrícola de produtos alimentícios, para cada tipo de exploração agropecuária nas diferentes regiões do país.
G) Todas as áreas destinadas ao cultivo, sofrerão rodízio e a quarta cultura será obrigatoriamente de gêneros alimentícios para o mercado interno, de acordo com normas fixadas pelo Poder Executivo
H) São prorrogados os contratos expressos ou tácitos de arrendamento e parceria agropecuária, cujos prazos e condições serão regidos por lei especial.
Prossegue a mensagem presidencial com sugestões importantes para a implantação da Reforma Agrária do presidente João Goulart: “Para a concretização da Reforma Agrária é, também imprescindível, reformar o parágrafo 16 do artigo 141 e 147 da Constituição Federal”. Só por esse meio será possível empreender a reorganização democrática da economia brasileira, de modo que efetue a justa distribuição da propriedade, segundo interesse de todos e com o duplo propósito de alargar as bases da nação, estendendo-se os benefícios da propriedade a todos os seus filhos, e multiplicar o número de proprietários, com o que será mais bem defendido o direito da propriedade.
Para alcançar esses altos objetivos seria recomendável, a meu ver, incorporarem-se os seguintes preceitos:
Ficam supressas, no texto do parágrafo 16 do artigo 141, a palavra “previa” e a expressão “em dinheiro”;
O artigo 147 da Constituição Federal passa a ter a seguinte redação...
... “A União promoverá a justa distribuição da propriedade e seu melhor aproveitamento, mediante desapropriação por interesse social, segundo os critérios que a lei estabelecer”.
Assim foi a mensagem do presidente João Goulart em março de 1964. O apelo quase dramático de Jango aos congressistas não ficou sem resposta. Aquele Congresso eleito em 1962, com muitos de seus parlamentares eleitos com financiamento da CIA americana através do Ibade, que gerou até uma CPI presidida por Ulysses Guimarães e, posteriormente, por Rubens Paiva, se posicionou. Dezoito dias depois, na madrugada do dia 2 de abril de 1964, o Congresso, convocado ilegalmente pelo senador Moura Andrade, reunido às pressas, declara vaga a presidência da República com o presidente João Goulart dentro do território nacional.
Era o golpe militar legalizado por um Congresso suspeito, que levaria o Brasil a mais de duas décadas de obscurantismo, ditadura, tortura, desaparecimento de pessoas sob a tutela do Estado, sequestros, exílios, cassações, perseguições políticas, fechamento do Congresso Nacional e outras tantas brutalidades contra a pessoa humana, sistematicamente praticada pelas ditaduras covardes e submissas ao imperialismo internacional.
Com a quarta frota americana na costa brasileira pronta para desembarcar e dar suporte aos golpistas, efetivava-se a derrocada de um governo democrático e progressista. Jango foi deposto, e sem poder voltar à pátria, morreu no exílio em 6 de dezembro de 1976, aos cinquenta e sete anos, em Mercedes, Província de Corrientes, Argentina.
A Reforma Agrária fizera outra vítima que se soma hoje aos milhões de brasileiros que clamam por justiça social, que clamam por terra e também clamam por oportunidades para todos.
A Reforma Agrária não é apenas uma possibilidade, ela é uma necessidade do nosso desenvolvimento social, humano, revolucionária, de uma esperança de integração coletiva, que haverá sem dúvida de acontecer.
A Reforma Agrária tem de ser revolucionária, não poder ser apenas distribuição fundiária.
Este artigo foi encomendado e publicado, originalmente, pela Fundação Leonel Brizola, do Partido Democrático Trabalhista, na “Revista Brava Gente”, por ocasião da passagem dos 60 anos da implantação da ditadura, através do golpe de abril de 1964.
Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum e do Caminho Político
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