Uruguai não é o paraíso da maconha que se imagina: cultivo, comércio e consumo são rigorosamente regulamentados e restritos aos residentes. Para uns, uma oportunidade comercial perdida; para outros, um problema a menos. Ao contrário do que se passa em outros locais do mundo, a maconha não é um fator de peso para o turismo do Uruguai. Isso porque, segundo a legislação que regula esse mercado e que acaba de completar dez anos, apenas moradores locais podem comprar e consumir a droga. Agora o Uruguai debate alterações da lei no sentido de relaxar tais restrições. No verão, quando o pequeno país mais recebe visitantes, a discussão sobre a liberação da comercialização e consumo de maconha por turistas aquece debates na TV e em bares pelas cidades, e divide os moradores e o governo.
"A atual regulação funciona bem. Agora, se abrirmos para todos, vamos nos transformar na nova Amsterdã", afirma o taxista Angel Daniel, de 45 anos, em referência à capital europeia famosa por atrair o turismo canábico.
Já para a garçonete Selma Dias, de 23 anos, a liberação aos turistas, principalmente argentinos e brasileiros, pode trazer benefícios econômicos. "Com a liberação poderíamos receber muito mais gente, gerando muito mais vagas em restaurantes, bares, e resultar numa alta na economia como um todo."
Como Uruguai gere a cannabis?
O Uruguai foi o primeiro país da América do Sul a legalizar o cultivo, comércio e o consumo de maconha. A Lei 19.172, publicada pelo governo de José Mujica em 20 de dezembro de 2013, passou a regulamentar o mercado por meio do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis (IRCCA), que emite todas as licenças para produção, pesquisa e comercialização da droga no país, e também registra os usuários.
Quatro anos depois da primeira aprovação, foi regulamentada a venda de produtos em poucas farmácias espalhadas pelo país. "No Uruguai, pudemos observar uma outra forma de controle social da maconha, no caso uma legalização com forte viés estatal. É o Estado que garante e controla a produção e também a comercialização, abrindo também, felizmente, a possibilidade do cultivo individual ou por meio de clubes e associações", explica Júlio Delmanto Franklin de Matos, doutor em história pela USP.
Os preços da erva são tabelados pelo governo. Em fevereiro, os pacotes de cinco gramas das três variedades comercializadas, que diferem pelo nível de tetrahidrocanabinol (THC, a substância mais psicoativa da cannabis), subiram até 8%. A mais cara, a Gamma, que possui maior taxa de THC, passou de 460 pesos para 500 pesos (cerca de R$ 63).
Apesar de os preços tabelados serem mais altos do que no mercado ilegal, o número de usuários registrados cresce, segundo especialistas. De acordo com dados do IRCCA, hoje há 66,2 mil cidadãos com autorização para compra da droga, cerca do dobro de há dez anos, que podem comprar nas 38 farmácias autorizadas do país. Além disso, para 13 mil está liberado o cultivo doméstico, e os 355 clubes canábicos autorizados registram 2 mil membros.
Atualmente, para comprar, aderir aos clubes ou ao cultivo próprio, é necessário ter pelo menos 18 anos, ser cidadão uruguaio e residir no país. Porém só se pode aderir a uma das três formas de acesso à erva. Para turistas e imigrantes, não há acesso legal.
Maconha para os turistas
As discussões sobre o turismo canábico têm um viés econômico. O país de 3,5 milhões de habitantes recebeu 3,8 milhões de turistas só em 2023, gerando uma receita de cerca de 1,7 bilhão de dólares, 27% a mais do que em 2022, segundo dados do Ministério do Turismo. Tais números explicam por que o debate acerca da liberação do consumo de maconha volta sempre à tona no Uruguai.
O projeto de lei de autoria de sete deputados da oposicionista Frente Ampla foi apresentado à Comissão de Turismo da Câmara dos Deputados e busca "complementar a regulamentação atual relativa à cannabis psicoativa para uso adulto".De acordo com o projeto, o Uruguai teria grande potencial para desenvolver essa atividade, por ser referência mundial no trato da maconha: "Nosso país é um exemplo no mundo pelo seu quadro regulatório de cannabis", afirmam os autores no projeto de lei complementar.
Além disso, prossegue o projeto, o mercado nacional regulado de cannabis precisa continuar avançando sobre o desregulado, sendo necessário, para tal, a reforma da legislação. "Um dos principais fatores parece ser a impossibilidade de acesso à cannabis por parte dos turistas que visitam o país ano após ano, muitos deles sob o pressuposto de que poderão acessar legalmente este produto, e que descobrem, surpreendentemente, que não podemos fabricá-lo."
Ao jornal local El País, Remo Monzeglio, subsecretário de Turismo e também membro do Conselho Nacional de Drogas, defendeu a necessidade da universalização do consumo, possibilitando a qualquer um comprar a erva, eliminando a necessidade de cadastro. Contudo, ressalvou que ainda há pontos a serem discutidos, não havendo, portanto, uma previsão de mudança.
Divergências nas ruas e na política
Enquanto o projeto é debatido por congressistas e membros do governo do presidente Luis Lacalle Pou, nas ruas dos principais centros, como Montevidéu e Punta del Leste, é fácil encontrar opiniões divergentes entre os residentes.
Roberto Mata, aposentado de 75 anos, afirma que a vantagem econômica trazida pela liberação seria irrisória perto dos problemas: "De que adianta aumentar o número de turistas, se virão milhares sem muito dinheiro, apenas para fumar cigarros de droga e irem embora, sem deixar nada de bom ao país?"
Já para a atendente de hotel Juliete de la Cruz, de 34 anos, a liberação apenas oficializaria algo que já vem ocorrendo: "Já temos notícias de gente que só vem ao Uruguai por causa disso. Ao liberarmos, iremos apenas oficializar, aproveitando também para faturar mais com mais uma vertente de turismo no país."
De acordo com Rosario Queirolo, professora do departamento de Ciências Sociais da Universidade Católica do Uruguai, a divergência constatada nas ruas é a mesma do governo. Segundo ela, não há consenso dentro da coalizão governamental sobre a necessidade de aprovação do projeto – o que fica ainda mais evidente em um ano eleitoral.
"Dentro da coalizão multicor que governa, há gente que está a favor desse tema, mas é uma coalizão bastante diversa, com partidos mais à direita que possuem gente contra também. Então acredito que mudanças de políticas públicas que necessitam passar pelo Parlamento ficarão trancadas neste ano, que é um ano eleitoral", prevê Queirolo.
Para a professora, no entanto, a discussão vai além da simples liberação ou não, implicando aceitar que o consumo existe mesmo hoje: "Atualmente o turista encontra a droga – seja no mercado totalmente ilegal ou naquele em que a produção é legal –, mas não o comércio. Então, a ideia é realmente trazer esse turista para o mercado legal, com suas regulações e impostos."
Vinicius Pereira/Caminho Político
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