"No Rio parte da polícia é sócia do crime organizado"

Autor do livro "Milicianos" Rafael Soares explica a atual guerra entre o narcotráfico e as milícias cariocas, pano de fundo do homicídio dos três médicos no início de outubro. Ao longo de dez anos de carreira, sempre cobrindo segurança pública no Rio de Janeiro, o jornalista Rafael Soares perdeu as contas das histórias que sabe de policiais que passaram a trabalhar para o crime. Sim, como ele mesmo costuma explicar, é gente que trabalhava para o Estado, foi equipada pelo Estado, treinada pelo Estado – mas mudou de lado.
Ele percebeu uma coisa em comum entre quem ascendia na carreira criminosa: eram os que, enquanto policiais, tinham colecionado gratificações, condecorações, promoções e reconhecimentos por matar. Esse é o pano de fundo do livro Milicianos – Como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele, que está em pré-venda e deve ser lançado nas próximas semanas.
No início de outubro a execução – ao que tudo indica, por engano – de três médicos, que estavam num quiosque carioca à beira-mar, deixou em evidência mais uma vez a violência do crime organizado do Rio. "Está ocorrendo uma guerra interna, com a maior milícia do Rio fragmentada e o tráfico tentando se aproveitar dessa fragilidade atual. Este momento que estamos vivendo é o pano de fundo da morte dos médicos."
Soares lembra que este cenário criminoso não é exclusividade do Rio de Janeiro, "mas aqui temos uma realidade particular, uma relação muito mais profunda entre policiais e o crime".
DW Brasil: Logo que o assassinato dos médicos veio a público, houve quem suspeitasse de ação planejada por milicianos, hipótese esta que acabou depois descartada. Faz sentido pensar em milicianos neste caso?
Rafael Soares: Quadrilhas formadas por policiais que se especializaram em matar e viraram matadores de aluguel existem no Rio há mais de 40 anos, usando técnicas aprendidas dentro da polícia, matam de uma maneira específica porque entendem como a polícia vai investigar esses crimes, então fazem de modo a proteger o assassino. O crime [desta semana] tem modus operandi completamente diferente. Escolheram um local na orla da Barra da Tijuca, cheio de testemunhas. Utilizaram uma pistola de 9 milímetros, arma com menor poder de destruição. E tem um ponto que também não batia: o monitoramento das vítimas. Geralmente os crimes cometidos por policiais têm trabalho de mais de alguns meses para o monitoramento das rotinas. No caso de Marielle [Franco, vereadora assassinada em 2018], foi assim. Isso não ocorreu no caso dos médicos. Eles tinham acabado de chegar ao Rio, não tinham construído hábitos na cidade.
A hipótese mais provável é de que um deles tenha sido confundido com um miliciano…
Hoje [sexta-feira, 06/10] ficou mais fácil falar, porque as investigações avançaram e ficou provado de fato que não era uma quadrilha de policiais que cometeu o crime, mas que tem a ver com uma guerra entre tráfico e milícia na zona oeste. Milícias foram, são grupos criminosos formados por policiais, na maior parte das vezes, e integrados por policiais, mas não só. As milícias cresceram muito de tamanho e a maior milícia do Rio [antes conhecida como Liga da Justiça] tem um civil ex-traficante como atual chefe.
As milícias foram se transformando nas últimas décadas, principalmente com a prisão ou morte de policiais que estavam no topo. Elas se expandiram e acabaram, principalmente na região metropolitana do Rio, ocupando uma área maior do que a dominada pela maior facção de tráfico do Rio, o Comando Vermelho. Só que em 2021, o então chefe da maior milícia do Rio foi morto pela polícia numa operação. E a partir dessa morte a situação da milícia no Rio muda. Antes existia uma coesão entre grupos, vários unidos por interesses, várias milícias trabalhando juntas. Com a morte desse líder, começaram disputas internas. Está ocorrendo uma guerra interna, com a maior milícia do Rio fragmentada e o tráfico tentando se aproveitar dessa fragilidade atual. Este momento que estamos vivendo é o pano de fundo da morte dos médicos.
Uma pergunta a partir do subtítulo de seu livro: por que agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele?
Ao tentar entender a carreira dos policiais que acabaram virando matadores de aluguel a serviço de criminosos, comecei a perceber que que a maior parte desses caras havia sido premiadíssima enquanto policiais. O Ronnie Lessa [ex-policial que teria atirado contra a vereadora Marielle] era um exemplo: foi uma máquina de condecorações, promoções por bravura. Ele era elogiado justamente porque matava. O fato de ser um policial que matava fazia dele, aos olhos da corporação, um herói. Ele foi estimulado a matar ao longo de quase 20 anos em que fez parte da PM. Depois, pegou tudo o que o Estado lhe ensinou e vendeu esse conhecimento para quem podia pagar melhor: o crime. No livro eu conto a história de vários outros.
Este problema é uma exclusividade do Rio de Janeiro?
Violência e corrupção policiais, policiais trabalhando para o crime, isso obviamente não são exclusividades do Rio, nem do Brasil. Mas aqui temos uma realidade particular, uma relação muito mais profunda entre policiais e o crime. Aqui no Rio a gente não vê só a polícia fechando os olhos para o crime, recebendo propina para não combater o crime. Aqui tem um outro nível de relação: parte da polícia é sócia do crime organizado. É um nível de relação um pouco mais profundo. Em meu livro quis entender a presença de policiais em vários negócios ilegais: milícias, facções do tráfico, grupos de tráfico de armas, quadrilhas de contraventores, matadores de aluguel… E em todos esses segmentos existem policiais não só recebendo dinheiro para não combater, mas trabalhando ativamente como players.
Edison Veiga/Caminho político
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