Para entrevistados pela DW, desaparecimentos expõem ausência do Estado na região. Discurso e ações do governo Bolsonaro teriam agravado desmonte da fiscalização e estariam por trás de clima de "liberou geral". O desaparecimento do jornalista britânico Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira no Vale do Javari expôs ao mundo a realidade de que a Amazônia, a maior floresta tropical do planeta, é hoje uma terra sem lei, apontam especialistas ouvidos pela DW Brasil.
"As regras que valem ali são as do crime organizado", atesta o delegado da Polícia Federal (PF) Alexandre Saraiva. "Ali atuam organizações criminosas com apoio dos políticos locais, estaduais, e tentáculos até nas altas esferas do governo brasileiro."
Saraiva conhece bem a região. O delegado atuou em diferentes estados da Amazônia por dez anos, entre 2011 e 2021, quando deixou a chefia da Superintendência da PF no Amazonas. Ele foi responsável por comandar a maior apreensão de madeira ilegal da história do Brasil. Em dezembro de 2020, a operação Handroanthus confiscou 226 mil metros cúbicos de toras na divisa do Amazonas com o Pará.
O resultado expressivo da ação não rendeu elogios, mas represálias do governo federal. Após o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ter se deslocado à região para prestar apoio aos madeireiros, o delegado apresentou notícia-crime contra Salles no Supremo Tribunal Federal (STF).
Saraiva foi exonerado e afastado da Amazônia. Atualmente, ele está alocado em Volta Redonda, no Rio de Janeiro. Para o delegado da PF, as ações e discursos do governo sinalizam uma conivência com a atuação de grupos criminosos na região.
"Nós tínhamos o Sistema de Documento de Origem Florestal (SISDOF), que monitorava o trânsito da madeira nativa pelo Brasil, e era público. Em maio do ano passado, foi retirado do ar e nunca mais voltou. É a mesma coisa que tirar da PM a possibilidade de consultar o site do Detran para ver se um carro é furtado ou não. Medidas como esta mostram que não existe nenhuma intenção de combater o crime na Amazônia", afirma Saraiva.
O fim da "indústria da multa"
Após prometer acabar com a "indústria da multa" durante a campanha eleitoral, Bolsonaro desautorizou publicamente ações de combate ao crime ambiental na Amazônia.
Em abril de 2019, primeiro ano de seu governo, o presidente desautorizou uma operação do Ibama em andamento contra o roubo de madeira dentro da Floresta Nacional (Flona) do Jamari, em Rondônia.
"Não é para queimar nada", afirmou Bolsonaro, em referência à destruição de maquinário das atividades criminosas conduzidas por agentes do órgão. A medida, que tem previsão legal, foi repetidamente criticada pelo presidente.
Naquele mesmo ano, Bolsonaro insinuou que poderia repreender agentes que aplicassem esse tipo de pena contra infratores, durante encontro com garimpeiros.
"Quem é o cara do Ibama que está fazendo isso no estado lá?", questionou o presidente. "Se me derem as informações, eu tenho como…", disse, sem completar a frase.
Clima de "liberou geral" na Amazônia
É recorrente ouvir de agentes da fiscalização ambiental que os discursos do presidente da República criaram um clima de "liberou geral" na Amazônia.
"Às vezes, estamos 200 km dentro da mata e tem gente lá dizendo que não deveríamos estar lá porque o presidente falou que iria acabar com a fiscalização", relata Wallace Lopes, diretor da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente (Ascema Nacional).
Na avaliação de Lopes, que é servidor do Ibama desde 2009, o discurso antiambiental do governo é um dos principais motivos para a escalada do desmatamento na Amazônia desde 2019.
"O que o presidente fala não muda a lei, mas as pessoas que estão dentro da floresta não entendem dessa forma. Quando o presidente critica a atuação do Ibama dentro de um garimpo, as pessoas lá dentro sentem que têm apoio do presidente para praticar atividades irregulares. É um incentivo", diz.
Desmatamento e desmonte da fiscalização
Na última sexta-feira (10/06), enquanto Bolsonaro defendia o combate ao desmatamento em seu governo, na Cúpula das Américas, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) anunciou mais um recorde de desmatamento na Amazônia. Nos cinco primeiros meses do ano, uma área de 2.867 km² foi devastada na Amazônia. É o maior valor da série histórica, iniciada em 2016.
As dificuldades impostas em um território coberto por densa floresta tropical tornam a fiscalização da área uma tarefa árdua por essência. Por sua vez, o déficit de pessoal e recursos nos órgãos de fiscalização ambiental é um problema que antecede o governo atual e dificulta ainda mais o combate ao crime na região. O corte de verba sob Bolsonaro reforçou o desmonte da fiscalização ambiental.
Em 2020, o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) contava com menos de 50% do efetivo previsto para o órgão. A situação também se observa no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e é ocasionada pela falta de reposição para as aposentadorias.
Neste ano, foi realizado um concurso, e cerca de 550 pessoas aguardam convocação. Todavia, desse total, apenas 90 serão alocados na área de fiscalização, mas não apenas na Amazônia, que receberá apenas uma parte desse efetivo.O Ibama teve seu maior efetivo de funcionários em 2012, quando o Brasil registrou o índice de desmatamento mais baixo da série histórica, apresentando queda de 84% na comparação com 2004 — ano em que foi implementado o Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia.
Vale do Javari desprotegido
Enquanto essas autarquias foram enfraquecidas, o crime organizado atingiu uma complexidade sem precedentes na Amazônia. É o que se observa na Terra Indígena Vale do Javari, local onde Dom Phillips e Bruno Pereira desapareceram.
A segunda maior reserva indígena do Brasil se localiza na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, onde cartéis brasileiros e colombianos disputam o controle do acesso ao Rio Amazonas, por onde a cocaína produzida na região é escoada para o mercado europeu.
Nesse contexto, atividades ilegais de extração de madeira, garimpo e caça se associam ao narcotráfico transnacional. O cenário representa enorme risco à fauna e flora locais, aos agentes de fiscalização e, sobretudo, para os cerca de 6 mil indígenas que vivem na região.
O Vale do Javari tem a maior concentração de povos isolados do mundo. São 19 etnias, dentre 26 que habitam a terra indígena. Em 2018, o Ibama fechou o único escritório que mantinha na região, na cidade de Tabatinga (AM), onde dois servidores fixos eram responsáveis por fiscalizar toda a área de 85 mil km² — extensão territorial próxima à de Portugal.
"Este e outros escritórios acabaram fechando pela impossibilidade de mantê-los com poucos servidores, do ponto de vista da segurança dessas pessoas. Mas a causa real é a ineficiência pública, porque se houvesse mais concursos e melhores condições de segurança para os fiscais nessa região, é onde deveriam estar", afirma Wallace Lopes.
O fechamento da unidade tem relação direta com um episódio ocorrido no município de Humaitá (AM), meses antes. Em outubro de 2017, garimpeiros destruíram bases do Ibama e do ICMBio no local, em represália a uma operação do Ibama que apreendeu balsas do garimpo ilegal no Rio Madeira.
Amazônia ainda "tem jeito"?
O cenário de expansão e fortalecimento dos grupos criminosos que atuam na Amazônia pode gerar a impressão de que o Estado não tem mais condições de recuperar esse território. Essa tese, no entanto, é enfaticamente refutada pelos especialistas ouvidos pela DW Brasil.
"A palavra-chave na Amazônia é rastreabilidade", comenta o delegado da PF Alexandre Saraiva. Ele cita o exemplo da operação Korubo, planejada pelo indigenista da Fundação Nacional do Índio (Funai) Bruno Pereira, que levou à destruição de 60 balsas do garimpo ilegal no Vale do Javari, em 2019.
"Hoje, a tecnologia de satélites disponível nos permite ter acesso a imagens do dia anterior. Antes, a busca realizada por aviões afugentava os criminosos, que se precaviam. É possível destruir uma balsa no dia seguinte a ela ter aparecido", diz Saraiva, que destaca a existência de outras tecnologias para o rastreio da origem de mercadorias extraídas ilegalmente, como ouro e madeira.
Militares na Amazônia
Entre 2019 e 2021, o governo federal submeteu o Ibama e o ICMBio ao comando do Exército, por meio do Conselho Nacional da Amazônia, chefiado pelo vice-presidente Hamilton Mourão.
As três intervenções realizadas pelas Forças Armadas na Amazônia nesse período foram ineficazes no combate ao desmatamento e consumiram R$ 550 milhões dos cofres públicos. Em apenas um mês, a Operação Verde Brasil 2 teve um gasto equivalente ao orçamento anual do Ibama para fiscalização.
"Se esses R$550 milhões tivessem sido investidos no Ibama, para realização de concurso público, reposição dos quadros e investimento dentro da instituição, a gente entregaria em menos de dois anos o desmatamento abaixo dos 5.000 km² por ano, que foi o recorde obtido em 2012", afirma Wallace Lopes.
O diretor da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Especialista em Meio Ambiente reporta que os militares trouxeram uma defasagem para a atuação dos órgãos de fiscalização ambiental, que se baseavam no trabalho de inteligência e uso de tecnologia.
"Eles trouxeram formas de fiscalização que não utilizávamos há 15 anos", diz. "Por exemplo, estávamos fiscalizando estradas para tentar pegar caminhões de madeira. Isso significa que a madeira estava sendo extraída em algum lugar. Eu quero saber onde ela está sendo cortada e impedir que essa área seja desmatada, em vez de ficar na BR-163 esperando para pegar um caminhão", detalha.
Alexandre Saraiva, da PF, critica ainda a frágil atuação das Forças Armadas no policiamento das regiões de fronteira. "A doutrina que prevalece ainda é a do inimigo externo, quando, na verdade, existe um inimigo muito mais poderoso nas barbas das Forças Armadas. Temos verdadeiros heróis na PF, no Ibama, na Funai, mas só o Exército e a Marinha têm estrutura operacional para confrontar essas organizações criminosas", avalia.
Responsabilidade internacional
Ambos os especialistas ouvidos pela DW Brasil ressaltam que a fiscalização constitui um remédio imediato para problemas com causas estruturais. A geração de alternativas econômicas para os povos da floresta é um dos pontos mais enfatizados, uma vez que dificuldades econômicas empurram a população local para atividades criminosas.
Outro aspecto ressaltado é a responsabilidade dos países europeus na implementação de protocolos mais rígidos para fiscalizar a origem dos produtos comercializados a partir da região. Uma vez que os criminosos utilizam fazendas e garimpos legais para "lavar" a produção ilegal, os meios utilizados atualmente para certificar as commodities exportadas pelo Brasil são considerados insuficientes.
É o caso do certificado FSC (Forest Stewardship Council, ou Conselho de Manejo Florestal, em português), selo verde mais conhecido no mundo hoje. A empresa responsável não cobre todas as etapas da produção, especialmente as do transporte e do depósito, justamente as mais sensíveis.
"Isso só serve para o consumidor europeu dormir mais tranquilo, porque não adianta nada", afirma o delegado da PF. "É urgente que a Europa mude o regulamento 995/2010, que trata da importação de madeira, porque é extremamente permissivo para práticas ilegais."
Madeira: principal vetor do desmatamento
Embora o cultivo de soja e gado costumem ser tratados como os principais vetores do desmatamento na Amazônia, Saraiva destaca que o comércio de madeira é o principal motor de destruição da floresta.
"É a madeira que financia o resto. Depois, vem o gado? Vem. Vem a soja? Vem. Pode chegar depois até um shopping center, não importa, a floresta já vai estar no chão. Como estratégia de Estado, devemos atacar o que dá dinheiro imediato para a organização criminosa, que é justamente a madeira", afirma.
Na avaliação do delegado, 99% da madeira que sai da Amazônia hoje é ilegal, dada a dificuldade de competir com a produção irregular, baseada em mão de obra análoga à escravidão e furto de energia da rede elétrica.
"Para mudar esse cenário, precisamos do apoio da comunidade internacional. Nós, como humanidade, repudiamos os CFCs [clorofluorcarbonetos] para defender a camada de ozônio. É preciso que agora nós repudiemos a madeira vinda da Amazônia, como forma de salvar a floresta", defende.
João Pedro Soares/Caminho Político
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