País acolheu milhares de refugiados desde que a guerra eclodiu na Síria, há dez anos. Após superarem obstáculos iniciais, muitos se veem em dificuldades em meio à crise provocada pela pandemia. Pai, mãe e duas crianças. Essa era a família de Talal Al-Tinawi em dezembro de 2013, quando pisou no Brasil pela primeira vez. Eles fugiam da guerra na Síria, que completa uma década nesta segunda-feira (15/03), sem perspectiva de chegar ao fim. Antes de embarcar rumo a São Paulo, Tinawi havia sido preso – por engano – durante três meses e meio em Damasco, sua cidade natal. Além disso, a família vinha de um período de dez meses vivendo em condições precárias na Jordânia.
Há cinco anos e meio, a DW Brasil contou essa história. Na época, eles ainda estavam começando a vida como refugiados no Brasil, e a família havia crescido: a pequena Sara, nascida em São Paulo, tinha sete meses. De lá pra cá, muita coisa mudou.
Tinawi já não é mais um refugiado. É um cidadão brasileiro. Ele e o resto da família se naturalizaram – com exceção do filho de 18 anos, que deve obter a cidadania em breve. Sara, a caçula, já tem seis anos.
Hoje desenvolto ao falar português, Tinawi deu muitas palestras e entrevistas nos últimos anos. Graças a uma delas, em uma escola particular de São Paulo, seus filhos mais velhos – hoje com 18 e 15 anos – conseguiram bolsas de estudos. O primogênito agora estuda Engenharia Mecatrônica em uma universidade privada, também com uma bolsa de estudos.Tinawi e a esposa vendem comida árabe por encomenda. Entre 2016 e 2018 tiveram um restaurante, mas hoje trabalham em casa, no Campo Belo, zona sul de São Paulo. Antes da pandemia, eles também faziam jantares e almoços sob reserva. Agora já faz um ano que isso não acontece.
Apesar de mais estabilizada no Brasil, a família sírio-brasileira sofre com o coronavírus e com a crise econômica que o país enfrenta. "A vida está muito difícil agora. Não tem mais trabalho, o preço das coisas está muito alto. Antes eu recebia dois ou três pedidos por dia, agora recebo dois ou três pedidos por semana", relata Tinawi.
Ele conta que muitos sírios estão na mesma situação de vulnerabilidade por serem autônomos ou microempresários. Fechar lojas e restaurantes – uma parcela considerável trabalha com alimentação – se tornou recorrente.
A situação dos sírios no Brasil
O Brasil abriga hoje cerca de 3.800 sírios reconhecidos como refugiados. Luiz Fernando Godinho, porta-voz da Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) no Brasil, vê a inserção no mercado de trabalho como o maior obstáculo à integração dessa população. Com a covid-19, a situação se agravou.
"A pandemia afetou muito severamente os refugiados, não só no Brasil, mas ao redor do mundo. Essas pessoas se valem muitas vezes de empregos informais ou de trabalhos que foram muito afetados pela redução da atividade econômica", disse ele à DW.
Ainda assim, Godinho avalia que os sírios têm boas condições de melhorar sua situação econômica. Em 2019, o Acnur realizou um levantamento socioeconômico dos refugiados no Brasil. Dos 419 ouvidos – dos quais 153 eram sírios – 48% possuíam ensino médio completo, e 30% tinham ensino superior. Uma média superior à brasileira. De acordo com o IBGE, apenas 27,4% da população com 25 anos ou mais têm o ensino médio completo no Brasil, e somente 17,4% possuem ensino superior. "Isso mostra que essas pessoas têm um bom capital para a integração no país", aponta.
Contudo, a revalidação do diploma é um enorme desafio. Na mesma pesquisa, apenas 14 entrevistados haviam conseguido revalidar seus diplomas. Tinawi, que é engenheiro mecânico formado em Damasco, faz parte do grupo que não teve sucesso. Hoje, ele já não pensa em exercer a profissão no país. "Eu preciso trabalhar, tenho família, para mim é muito difícil conseguir estudar. Então agora eu trabalho com outra coisa", diz.
A dificuldade em aperfeiçoar o português é outro desafio. Tinawi e a esposa só conseguiram estudar a língua durante alguns meses. Depois, a necessidade de trabalhar e sustentar a família se impôs na rotina do casal.
Acompanhar as condições de vida dos sírios que ingressaram no Brasil na última década é difícil, pois "a partir do momento em que essas pessoas vão se integrando, elas se desligam da rede de assistência", afirma Godinho.
A tendência, contudo, é que elas tenham cada vez mais segurança do ponto de vista legal. Pela lei, a naturalização brasileira pode ser solicitada após quatro anos do pedido de reconhecimento da condição de refugiado.
Quanto à inserção no mercado de trabalho, Godinho ressalta que a questão varia de acordo com a realidade econômica do país. "Agora a situação está mais complicada", indica.
Essa é exatamente a realidade que Tinawi e a família vivem hoje. Desde que chegaram ao Brasil, em 2013, eles viram o panorama econômico mudar muito, do preço da gasolina ao dos alimentos. "O meu sonho é pagar as minhas contas no final do mês", diz sírio-brasileiro. Apesar das dificuldades, a família não cogita voltar para a Síria.
Uma década de crise na Síria
Há exatos dez anos, a Síria vivia uma onda de protestos contra o governo que, rapidamente, se transformaram em guerra civil. Uma guerra que ainda não terminou. Hoje, há zonas de estabilidade no país, e o presidente Bashar al-Assad controla cerca de dois terços do território, onde reside também a maioria da população.
População essa que era composta por 22 milhões de pessoas antes do conflito. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que mais da metade desse número tenha abandonado suas casas – com 6,2 milhões de pessoas deslocadas internamente no país, e 5,6 milhões no exterior.
Tinawi não voltou à Síria desde que se estabeleceu no Brasil. A esposa e os filhos já visitaram o país natal três vezes, pois muitos parentes permaneceram lá. O apartamento da família em Damasco está alugado, e um irmão de Tinawi toca as duas lojas que ele possuía na capital.
Questionado se as coisas na Síria estão melhores, ele é categórico: "Não. A cada mês, fica pior. A vida na Síria agora está muito difícil. A economia caiu muito, não como no Brasil, muito mais. São dez anos em guerra, é muito difícil. A vida está muito cara, e é muito perigoso."
O país enfrenta uma grave crise econômica, com um aumento excessivo nos preços dos alimentos. A situação é agravada pela pandemia de covid-19 e pela carência de infraestrutura, destruída na guerra. O Programa Mundial de Alimentos (PMA) alertou, em fevereiro deste ano, que 12,4 milhões de pessoas, cerca de 60% da população, passam fome.
"A crise na Síria é um exemplo clássico de conflitos que nunca terminam", diz Godinho, porta-voz do Acnur no Brasil. Ele afirma que é preciso um maior esforço da comunidade internacional no sentido de auxiliar a solucionar a crise para que os sírios – se assim desejarem – possam um dia regressar com segurança e com as condições necessárias para o país natal e retomar as vidas que deixaram para trás.
Isabela Martel/Caminho Político
@CaminhoPolitico
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