Durante o governo de Alberto Fujimori, 320 mil mulheres e homens foram esterilizados sob pretexto de combate à pobreza. Mais de 20 anos depois, vítimas têm uma perspectiva de reparação.Calcula-se que entre os anos 1996 e 2000, mais de 300 mil mulheres e 22 mil homens foram esterilizados contra a vontade no Peru, na maioria dos casos sem anestesia e sem tratamento pós-operatório. Esses atos de violência estatal faziam parte do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva e Planejamento Familiar imposto pelo governo Alberto Fujimori (1990-2000), que os propagava como medida de combate à pobreza. Embora o Tribunal Penal Internacional (TPI) tenha classificado esses atos como crimes contra a humanidade, até hoje a Justiça peruana não os esclareceu inteiramente. Os perpetradores não foram nem condenados, nem punidos.
Somente agora, mais de 20 anos mais tarde, o Estado peruano reconheceu o direito das vítimas a reparação. Com essa decisão, os atingidos serão incluídos num programa de reparação para as vítimas do conflito interno em que, nos anos 80 e 90, as Forças Armadas e os grupos armados do Sendero Luminoso se confrontaram com o Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA).
Forma de violência sexual
O programa de esterilização visava mulheres em idade reprodutiva, a maioria de meios desfavorecidos e pobres. Muitas eram indígenas e deslocadas internas, algumas ainda sem filhos.
O caso de Mamérita Mestanza Chávez é exemplar: entre 1996 e 1998, a mulher de 33 anos foi coagida até aquiescer, sob pressão, a se submeter a uma operação. Sem receber assistência médica nem antes, nem depois, ela sofreu lesões graves e morreu das sequelas.
Seu caso foi apresentado em 2003 à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). O Ministério Público peruano suspendeu por diversas vezes os inquéritos, provocando protestos da sociedade nacional e de organizações de direitos humanos. Por fim o caso foi reaberto, mas até hoje os responsáveis não foram a tribunal.
A luta contra a impunidade, que já dura mais de uma década, vem sendo travada por diferentes movimentos de direitos humanos e das mulheres. Os sobreviventes e familiares da vítimas da esterilização forçada sistemática seguem exigindo justiça e reparações.
A advogada Maria Ysabel Cedano, diretora da organização Estudio para la Defensa de los Derechos de la Mujer (Demus) lembra que a nova regulamentação reconhece as vítimas de "violência sexual em todas as suas formas", o que inclui esterilizações sem o conhecimento ou a permissão dos atingidos.
Ela considera isso um marco, um importante passo em direção ao reconhecimento dos direitos das vítimas: embora o Estado peruano já tenha admitido por diversas vezes esses direitos, continuou havendo "retrocessos e reveses".
Processo contra Fujimori
Falando à DW, Rocío Silva Santisteban, congressista da liga eleitoral ecológica de esquerda Frente Ampla, critica o fato de o partido do ex-presidente Alberto Fujimori, detentor da maioria no Congresso nos últimos 15 anos, até hoje negar que sequer houve um conflito interno armado no Peru.
O próprio Fujimori cumpre atualmente pena de prisão de várias dezenas de anos por corrupção e violação dos direitos humanos. Agora ele deverá responder a um novo processo pelas esterilizações em massa. Está marcada para 1º de março a audiência em que o Ministério Público apresentará sua queixa definitiva contra o ex-chefe de Estados e altos funcionários do sistema de saúde.
"É um megaprocesso e o primeiro desse tipo no Peru. Quase 1.700 vítimas abriram ação contra o Estado peruano", relata a congressista. O julgamento representa a esperança de justiça para mulheres como Mamérita Mestanza e muitas outras.
Para a ativista dos direitos femininos Cedano, a perspectiva de uma compensação às vítimas significa também a expiação de uma culpa histórica: sob o cínico pretexto de querer combater a pobreza no país, na época o Estado decidiu sobre o corpo das mulheres.
"Tudo foi organizado de forma que os estabelecimentos médicos tinham que cumprir certas quotas de esterilização", caso contrário, não recebiam subsídios. "E assim eles saíam à procura das mulheres adequadas." Algumas jovens iam para uma consulta ao ginecologista, recebiam uma pílula para dormir e eram esterilizadas sem saber nem ter concordado.
Ao se confrontar com essa brutal fase de sua história recente, o Peru inaugura um novo capítulo na luta contra a impunidade. No entanto, ainda é incerto quando e se as compensações chegarão de fato às sobreviventes e às famílias das vítimas.
Cristina Papaleo/Caminho Político
@CaminhoPolitico
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