O senador João Villas Boas (UDNMT)
estava inconformado. Quando
faltavam apenas duas semanas para a
transferência da capital federal do Rio
de Janeiro para Brasília, marcada para
21 de abril de 1960, ele subiu à tribuna
do Palácio Monroe, a sede do Senado, no
Rio, para argumentar que o presidente
Juscelino Kubitschek cometia um erro
grave ao inaugurar uma cidade ainda
em obras:
— O senhor presidente está distribuindo
convites até a Sua Santidade o papa e
à rainha da Inglaterra para virem assistir
a quê? A andaimes, apartamentos em
construção e ruas poeirentas, que só
atravessá-las nos deixa a roupa marrom.
Isso na época da seca. Quando chove,
é preciso tirar os sapatos e suspender
a calça até o joelho para atravessar o
lamaçal. A cidade também não tem luz
nem esgoto. É grande o ridículo da parte
de nosso governo.
No próximo dia 21, a mudança da
capital completa 55 anos. Documentos
históricos guardados no Arquivo do
Senado mostram que, às vésperas da
transferência, o clima no Plenário era
de excitação.
De um lado, a oposição
(encabeçada pela UDN) insistentemente
ocupava a tribuna para apontar cada
falha de Brasília e exigir o adiamento
da inauguração até que os políticos e os
funcionários públicos encontrassem na
cidade condições satisfatórias de habitação.
Do outro lado, a base governista
(liderada pela aliança PSD-PTB) se derramava
em elogios a JK pela façanha de
erguer uma cidade do nada, no vazio do
Planalto Central, em apenas quatro anos.
No mesmo pronunciamento, Villas
Boas afirmou que a falta de hotéis em
Brasília forçaria muitos dos participantes
dos festejos inaugurais a se hospedarem
em Goiânia e até mesmo em Araxá (MG).
O senador oposicionista Mem de Sá (PLRS)
apoiou o colega. Ele, que semanas
antes havia inspecionado a nova capital,
disse que nem o luxuoso Brasília Palace
Hotel, aberto em 1958, era digno de receber
os convidados estrangeiros de JK:
— Quando lá estive, o hotel mostrava
em inúmeros pontos as marcas da imprudência
administrativa pela ânsia da
construção em tempo recorde. Já eram
inúmeros os lugares nos forros e nos
tetos em que as infiltrações e a umidade
faziam com que começassem a cair os
revestimentos, que, de resto, são precá-
rios, de segunda e de terceira qualidade.
JK vinha inaugurando com pompa e
circunstância cada edifício que ficava
pronto. O objetivo era convencer o Brasil
de que a transferência se daria, sim, em
21 de abril, conforme mandava o cronograma
original.
— Em 21 de abril, pedir-se-á emprestado
um cadáver a Goiânia para a
inauguração do cemitério de Brasília
— alfinetou Mem de Sá, arrancando
gargalhadas dos senadores.
Lobão da Silveira (PSD-PA) correu para
defender o governo.
Ele disse ter certeza
de que Brasília estaria completamente
em ordem dentro de poucos dias:
— Em Brasília, trabalham-se 24 horas
por dia e multiplicam-se os dias por três.
Daniel Krieger (UDN-RS) rebateu:
— E também se gasta por três.
Outro argumento dos opositores era
que o governo passaria um bom tempo
livre do controle popular, já que a nova
capital ainda não oferecia a infraestrutura
básica de telecomunicações às emissoras
de rádio e TV.
Apartamento em obras
A mudança da capital do Rio para o
centro do país já estava decidida desde
o início da República. Atendendo uma
determinação da Constituição de 1891,
o presidente Floriano Peixoto criou no
ano seguinte uma comissão que explorou
o Planalto Central e apontou a área do
estado de Goiás que deveria abrigar a
nova sede do governo.
Aliado de JK, o senador Lima Teixeira
(PTB-BA) apresentou o principal argumento
dos chamados mudancistas:
— Com a transferência da capital,
levaremos um pouco do progresso do
litoral para o interior do Brasil.
Não é
possível que continue o Brasil com duas
zonas distintas: uma subdesenvolvida e
outra próspera. Quando se concretizar a
transferência da capital para o coração
do Brasil, aqueles que aqui se utilizaram
da tribuna para combatê-la hão de
arrepender-se, diante das possibilidades
econômicas que impulsionarão o país.
Mesmo fazendo parte da base governista,
o senador Caiado de Castro (PTB-DF)
não escondia sua irritação com o ritmo
das obras.
Ele pediu a palavra para reclamar
que seu apartamento funcional em
Brasília ainda não estava pronto:
— Não sou homem de comodidades.
Nasci no Distrito Federal [a atual cidade
do Rio], mas vivi no sertão. Como
soldado, já dormi até em barraca. Mas,
como senador da República, posso morar
numa barraca em Brasília? Se receber as
chaves do apartamento, irei para a nova
capital. Se não, permanecerei aqui, na
Cidade Maravilhosa, aguardando que
termine a construção do edifício que
terei que habitar.
Com a transferência, a cidade do Rio
deixaria de ser o Distrito Federal e se
transformaria no estado da Guanabara.
Caiado, que era carioca, disse que seus
conterrâneos estavam felizes com a mudança,
pois deixariam de ter um prefeito
nomeado pelo presidente da República:
— De agora em diante, seremos donos
do nosso nariz. Poderemos dirigir o estado
com aqueles que tiverem a ventura
de merecer a confiança do povo [pelo
voto]. Hoje, como se sabe, quem manda
é o governo federal.
O Congresso Nacional teve papel decisivo
na criação de Brasília. Foram os
senadores e deputados que aprovaram
as leis propostas por JK, incluindo as
que liberaram os recursos financeiros
necessários para as obras.
Explica o historiador e consultor legislativo
do Senado Marcos Magalhães,
autor de um estudo sobre a mudança
da capital na perspectiva do Congresso:
— A oposição não se empenhou em
derrubar os projetos relativos a Brasília
porque acreditava que a nova capital era
uma utopia e representaria o suicídio
político de JK.
Os projetos acabaram
sendo aprovados com facilidade. No final,
quando a nova capital já era irreversível,
a oposição se mobilizou para criar CPI e
adiar a inauguração. No entanto, nada
disso adiantou.
Assim, com repiques de sinos, missas,
coquetéis, jantares e bailes, JK cumpriu
sua promessa e inaugurou Brasília no
feriado de Tiradentes.
A derradeira sessão do Palácio Monroe
ocorreu na tarde de 14 de abril, uma semana
antes dos festejos. Cheios de nostalgia,
os senadores se despediram do Rio.
— Estas cadeiras que ocupamos vagas
ficarão para todo o sempre — discursou
Argemiro de Figueiredo (PTB-PB). — Não
sairemos daqui com a fleuma intangível
dos ingleses. Sairemos como latinos,
arrebatados de emoções.
Os nossos
discursos, os debates calorosos, os pequenos
incidentes, o rumor dos nossos
passos, subindo e descendo os degraus
deste recinto, este teto sóbrio e nobre,
estas colunas romanas, a agitação dos
taquígrafos, a curiosidade indiscreta
dos jornalistas, o ruído dos tímpanos,
tudo que lembramos transmuda-se em
saudades tão intensas que nos levam a
dizer que esta Casa, ao cerrar as suas
portas, guardará também alguma coisa
de nossa própria vida.
Novacap e Velhacap
O senador Jorge Maynard (PSP-SE)
também se emocionou:
— Não podemos esconder nem dissimular
as saudades com que todos
deixamos a terra carioca. Mas o interesse
maior do Brasil exige que a deixemos e
o fazemos certos de que estamos praticando
um ato de sadio patriotismo.
O Rio
de Janeiro ficará para sempre nos nossos
corações e dele levaremos as mais gratas
recordações. O Brasil nunca esquecerá
que aqui pulsou durante séculos a alma
da nação brasileira.
Guido Mondin (PRP-RS) citou os
apelidos que Brasília e o Rio ganharam
naquela época — Novacap (nova capital)
e Velhacap (velha capital):
— Não me conformo quando se referem
ao Rio de Janeiro chamando-o de
Velhacap. Não! Ninguém lhe tirará mais
a situação que o tempo lhe deu, transformando
esta ainda capital de nossa pátria
numa das mais belas cidades do mundo,
a nossa Belacap. Brasília há de ser agora o
cérebro desta nação, mas o Rio de Janeiro
será sempre o coração da pátria.
No meio de todo aquele frenesi, o senador
Affonso Arinos (UDN-DF) advertiu
que ninguém havia se preocupado com
o busto de Ruy Barbosa que adornava o
Plenário. A efígie do célebre jurista, que
foi senador de 1890 a 1921, quase ficou
para trás na mudança para Brasília.
O
senador Cunha Mello (PTB-AM), que
presidia a sessão, avisou que a Mesa
do Senado acolhia a sugestão e decidia
que a imagem seria levada para a nova
capital — é a mesma que hoje se encontra
no Plenário do Senado.
A primeira sessão do Senado no edifício
assinado por Oscar Niemeyer se
realizou um dia após a inauguração da
capital, em 22 de abril. Villas Boas, Mem
de Sá, Krieger e Caiado, os senadores
mais críticos da mudança, faltaram. Dos
parlamentares presentes, o que se ouviu
foram discursos ufanistas e de
louvor a JK.
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